1. O Iluminismo
O surgimento do humanismo está ligado ao do Iluminismo. O Iluminismo, movimento surgido no início do século XVIII, era em vários aspectos uma revolta contra o poder da religião institucionalizada e contra a religião em geral. As pressuposições filosóficas do movimento eram, em primeiro lugar, o racionalismo de Descartes, Spinoza e Leibniz, e o empirismo de Locke, Berkeley e Hume. O termo "empirismo" vem do grego empeiria, que significa "experiência". A tese fundamental do empirismo é que o conhecimento humano legítimo é obtido pelas informações chegadas à mente através dos sentidos. A maioria dos filósofos empíricos não considera como legítimo o conhecimento que o homem adquire através da imaginação, dogma, tradição ou pelo raciocínio puro. Geralmente consideram como sendo "inverificável" qualquer conhecimento que provenha de áreas como arte, moralidade, religião e metafísica. O que estas duas filosofias tinham em comum é que ambas negavam a possibilidade de se conhecer a Deus e portanto, Ele deveria ser deixado de fora da pesquisa científica.
Não tardou que o Iluminismo provocasse impacto dentro da Igreja, especialmente na área de estudos bíblicos e da interpretação das Escrituras. Estudiosos da Bíblia, influenciados pelo humanismo racionalista do Iluminismo, adotaram diversas posturas em sua interpretação:
A. Rejeição do sobrenatural e da revelação
Eles passaram a rejeitar a idéia de que Deus se revela ou intervém na história e nos acontecimentos humanos. Não restou mais espaço para o sobrenatural. Houve uma secularização de todos os aspectos da vida e do pensamento. Como resultado desta invasão na teologia, chegou-se a conclusão de que o sobrenatural não invade a história. A história passou a ser vista como simplesmente uma relação natural de causas e efeitos. Revelação e atuação divinas na história foram excluídas a priori. Como conseqüência, os relatos dos Evangelhos acerca da atividade sobrenatural de Jesus passaram a ser desacreditados: eram meras lendas e invenções piedosas daqueles cristãos primitivos.
Os pesquisadores críticos justificaram sua abordagem "neutra" das Escrituras afirmando que a Igreja Cristã, pelos seus dogmas e decretos havia obscurecido o verdadeiro sentido das Escrituras. Tais pesquisadores diziam que, no caso dos Evangelhos, os dogmas acerca da divindade de Jesus haviam obscurecido a sua figura humana, e tornaram impossível, durante muito tempo, uma reconstrução histórica da sua vida. Essa impossibilidade, continuam, tornou-se ainda maior após a Reforma, quando a interpretação dos Evangelhos e do NT em geral passou a ser controlada pelas confissões de fé e pela teologia sistemática.
B. Leitura da Bíblia controlada pela razão
Estes estudiosos humanistas argumentam ainda que, para que se possa chegar aos fatos por detrás do surgimento do Cristianismo, seria necessário deixar para trás dogmas e teologia sistemática, e tentar entender e reconstruir os fatos daquela época.
O principal critério a ser empregado seria a razão, que os humanistas racionalistas entendem como medida suprema da verdade. As ferramentas a serem usadas seriam aquelas produzidas pela crítica bíblica, como crítica da forma, crítica literária, entre outras.
2. O impacto nos seminários e universidades
Os estudiosos responsáveis pelo surgimento e desenvolvimento inicial deste método racionalista de ler a Bíblia tentaram sustentar ao mesmo tempo sua fé em Deus e nas Escrituras e um compromisso com o racionalismo. Muitos se tornaram deístas. Deísmo é o termo aplicado ao pensamento dos livre pensadores dos séculos XVII e XVIII que procuraram compatibilizar a crença em Deus e o racionalismo do Iluminismo.
Mas gradualmente o racionalismo foi prevalecendo e sufocando a fé. Os principais estudiosos, que acabaram por influenciar profundamente os seminários e as igrejas em toda a Europa e nos Estados Unidos (e posteriormente esta influência chegou ao Brasil) adotaram algumas posturas quanto à Bíblia que acabaram por minar completamente a sua autoridade e a confiança da Igreja nela, como a infalível Palavra de Deus.
Um professor da Faculdade Teológica de Leipzig, na Alemanha, chamado Keil, tornou-se conhecido por insistir que o conceito de inspiração divina deveria ser deixado fora da leitura da Bíblia, já que dever-se-ia ler a Bíblia de forma neutra, sem idéias pré-concebidas. Johann G. Eichhorn (séc. XVIII-XIX), um erudito alemão orientalista da Faculdade de Göttingen, aplicou o conceito de mito aos relatos miraculosos do AT e NT. Para ele, mito era a maneira pela qual a raça humana articulava conceitos nos tempos primitivos. As fontes que os autores bíblicos usaram estavam revestidas de "mitos". Foi ele quem criou o termo "alta crítica".
A influência destes mestres foi muito grande em David F. Strauss (séc. XIX), filósofo e teólogo alemão protestante. Ele sintetizou o sobrenatural e o natural no conceito de mito. Declarou que os Evangelhos estão cheios de sagas, lendas criadas pela Igreja apostólica sobre Jesus.
Em seguida, neste processo de sucateamento da Bíblia, houve uma gradual separação entre os dois Testamentos. A Bíblia, diziam eles, não é um livro harmônico e coerente, mas se contradiz. Não se pode estudar o Antigo Testamento à partir do Novo e nem vice-versa. Eles reagiram contra a interpretação do AT que era feita do ponto de vista do NT (interpretação cristológica). Ernesti (séc. XVIII), teólogo e filólogo de Leipzig (Alemanha), insistiu que o AT e o NT fossem separados, e que a leitura do NT fosse liberada do dogma eclesiástico da Igreja.
Finalmente, alguém assumiu claramente o que já estava oculto, que era o abandono da doutrina da inspiração e inerrância das Escrituras. Johann Semler (séc. XVIII), teólogo luterano alemão da Universidade de Halle fez a separação entre palavra de Deus e Escritura Sagrada, e com isso rejeitou o conceito de inspiração. O cânon era uma questão puramente histórica. As Escrituras deveriam ser entendidas como testemunhas de uma época histórica específica – sem relevância para hoje. Insistiu também em separar o AT e o NT. Esse conceito levou à rejeição da doutrina da revelação, inspiração e da intervenção sobrenatural de Deus no mundo. Como resultado, a Bíblia passou a ser estudada como qualquer outro livro, e o método histórico-crítico passou a ser a única ferramenta que poderia descobrir a verdade.
3. O impacto nas igrejas
O impacto do humanismo racionalista se fez sentir primeiramente nos seminários e faculdades de teologia. Mas logo, os pastores que ali estudaram, passaram estas idéias para suas igrejas. A missão da Igreja deixou de ser a evangelização de todos os povos e passou a ser somente obra social (já que não havia mais uma Bíblia que valesse a pena ser pregada!). Começa o movimento ecumênico, já que agora percebeu-se que o Cristianismo é uma religião igual às outras. Ser cristão não é mais visto como crer e seguir a Jesus Cristo, mas em viver uma vida moralmente correta e fazer obras sociais.
Não demorou muito para que as igrejas européias atingidas por esta forma de “cristianismo” começassem a se esvaziar. E este processo continua até o dia de hoje. Graças a Deus já podemos observar uma reação na própria Alemanha, de estudiosos que voltam a insistir em interpretar a Bíblia levando em conta o fato de que ela é a Palavra de Deus, como Peter Stuhlmacher, Gerhard Maier e Eta Linnemann.
4. Qual a influência no Brasil?
O Cristianismo moldado pelo humanismo racionalista alcançou o Brasil de diversas maneiras. Primeira, através de pastores brasileiros que foram estudar no exterior, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, em seminários e universidades onde este tipo de leitura da Bíblia predomina. Voltando com graus de mestre ou doutores, tornaram-se professores de seminários evangélicos, onde transmitem estes conceitos aos alunos, futuros pastores das igrejas.
Segunda, através da literatura. Muito material escrito por estudiosos teologicamente liberais foi traduzido para o português. Os pastores brasileiros que não têm conhecimentos destas coisas, mas que são ávidos por aprender, acabam comprando e consumindo este material.
A ala progressista da Igreja Católica, influenciada por este tipo de abordagem da Bíblia, também traduz e publica muito material desta linha, utilizando-se de editoras católicas. Os cursos superiores de teologia das universidades católicas são via de regra dentro do “estudo científico” da Bíblia.
Entretanto, não se pode dizer que o humanismo “teológico” no sentido descrito acima é a linha predominante na Igreja evangélica brasileira, muito embora faça sentir sua presença, especialmente nas igrejas mais antigas e históricas.
Talvez a maior ameaça hoje às igrejas evangélicas do Brasil seja algo oposto, mas que ao final, leva ao mesmo efeito. Refiro-me ao experiencialismo e ao pragmatismo, que também acabam por tirar a autoridade máxima da Palavra de Deus. Mas, sobre isto falaremos em outra ocasião.
CONCLUSÃO
Não podemos desprezar e rejeitar tudo que vem do humanismo racionalista. A sua influência nos estudos da Bíblia serviram para alertar a Igreja da necessidade de estudar mais seriamente a Bíblia e utilizar-se de outras ciências que podem funcionar como auxiliares da teologia. Por outro lado, precisa-se ter cuidado com os princípios por detrás dos métodos de interpretação e das teologias surgidas debaixo do impacto do racionalismo. Deus é deixado de fora como Aquele que existe e atua diretamente neste mundo que Ele criou para a Sua glória.
Penso que devemos ter uma teologia, uma vida cristã e igrejas que sejam firmadas na verdade, que valoriza os estudos e o desenvolvimento do conhecimento teológico, e que por outro lado não abre mão da infalibilidade das Escrituras e sua autoridade para nós hoje.
Fonte: IPB
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