Ideologia nada tem a ver com ideias



Quando entrei em contato com ideologias e religiões pela primeira vez, considerei-as, à primeira vista, tentativas de entender o mundo. Presumi que as pessoas acreditavam sinceramente nelas e fariam uso delas para inferir as consequências adiante — ou, no caso de não puderem aceitar uma consequência, admitiriam que estão erradas e mudariam sua ideologia. Tentei avaliar as ideologias com base em evidências e correspondência à realidade, que eu presumi que era o que se deve fazer.

Depois de alguns anos, percebi gradualmente que, para o resto do mundo, não se tratava realmente de ideias ou de entender o mundo. Isso continua surpreendente e decepcionante para mim.

Como é possível ideologia não ter nada a ver com ideias?

Espere, uma ideologia é um certo tipo de sistema de ideias, então como é que poderia “não ter nada a ver com ideias”? O que eu quero dizer com isso é que:

a. As razões pelas quais as pessoas escolhem uma ideologia são externas às características intelectuais da ideologia (os argumentos, as evidências, as virtudes explicativas) e têm mais a ver com características arbitrárias extrínsecas, como quais outras pessoas adotam essa ideologia, ou as associações emocionais vagas que ela carrega.

b. A maioria das pessoas não levam muito a sério o conteúdo de sua ideologia — na verdade, não a usam para entender o mundo real. Na maior parte, serve para dizer alguma coisa, e para ralhar com outras pessoas que não disserem. Usam o debate ideológico como procuração para disputas tribais. Não apoiam o grupo G por causa da ideia X; apoiam X porque é a ideia associada ao G.

Apontei numa publicação anterior que as pessoas que professam fé no cristianismo muitas vezes não vão à igreja, não lêem a Bíblia, nem seguem seus ensinamentos. Poucas delas de fato dão a outra face, também não parecem estar esperando ansiosamente pela morte (como se espera de quem planeja ir para o céu). Penso que muitas pessoas também se comportam assim na política. Por exemplo, temos as pessoas que dizem que os lockdowns da COVID são essenciais, mas depois vão a alguma grande aglomeração. Ou pessoas que dizem que as eleições são roubadas, mas ainda vão votar.

Tem a ver com o quê, então?

Personalidade

Tem a ver com muitas coisas, mas uma das maiores é: personalidade. Adotar uma ideologia é uma forma de se expressar. Você escolheu a ideologia que se encaixa em você.

Há estudos de psicologia que medem a correlação entre a ideologia política e traços de personalidade. Especialmente as características chamadas de “big 5”:

  1. Abertura a experiências
  2. Conscienciosidade
  3. Extraversão
  4. Agradabilidade
  5. Neuroticismo

Conservadores têm maior conscienciosidade. Progressistas têm maior abertura, agradabilidade e neuroticismo. Por que haveria uma correlação entre essas características e crenças políticas? Obviamente, porque os traços de personalidade estão afetando as crenças das pessoas. E afetam porque as pessoas estão escolhendo uma ideologia que “combine com seu estilo”, por assim dizer, em vez de simplesmente avaliar ideologias com base em motivos intelectuais.

Genes

Há também um estudo que descobriu que as crenças políticas são herdáveis. (Alford et al., “Orientações Políticas são Transmitidas Geneticamente?”). Os autores chegaram a uma estimativa de herdabilidade(1) de 0,53 para a orientação política (p. 162), bem maior que a influência do ambiente compartilhado e do ambiente não-compartilhado. Isso é meio estranho, não é? Quem adivinharia que crenças políticas pudessem ser transmitidas geneticamente? Mas, é claro, as crenças não são transmitidas diretamente; o que se transmite são traços de personalidade, e as pessoas escolhem suas crenças políticas com base em seus traços de personalidade.

Acho que isso tudo é bem desanimador, pois penso que a verdade a respeito de questões políticas, filosóficas e religiosas é importante. Não precisamos de crenças que nos confortem. Precisamos de crenças que correspondam à realidade, se queremos de fato resolver problemas sociais.

Tribos

Pode ser que você queira saber como é que traços de personalidade se encaixam em posições políticas específicas — por exemplo, como é que a abertura a experiências explica a crença de que fetos não têm direitos?

Hipotetizo que a escolha primária que as pessoas fazem não é tanto a quais proposições elas querem se amarrar, mas a qual grupo de pessoas querem se afiliar. Talvez só há uma relação bem tênue entre algum traço de personalidade e alguma posição política em particular, mas é o suficiente para tornar essa posição um pouco mais prevalente, inicialmente, entre as pessoas com esse traço. Porém, uma vez que essas pessoas decidem que elas pertencem ao “mesmo lado” na sociedade, há pressão psicológica para membros individuais da tribo se conformarem às crenças da maioria da tribo, e se oporem às crenças do “outro lado”.

Então, por exemplo, você decide que fetos não têm direitos porque a posição dos direitos do feto é associada à outra tribo, e você não quer ser desleal ao seu próprio lado adotando uma das posições do outro lado. Evidentemente, você nunca diz isso a si mesmo; você só acha automaticamente os argumentos do seu grupo “mais plausíveis”.

Implicações

Enfim, acho que há duas lições a serem aprendidas aqui. Uma é o ceticismo político: já que as crenças políticas das pessoas são baseadas em grande parte em seus traços de personalidade (que são em grande parte genéticos), as suas em particular são baseadas em grande parte em traços de personalidade. Se isso é verdade, suas crenças provavelmente não são muito responsivas a evidências ou a razões. Claro, você pode pensar que você tem um monte de evidências e de razões para elas, mas isso é o que a maioria das pessoas pensa. A melhor explicação é que você pega as crenças que combinam com sua personalidade, e então mecanismos semiconscientes ou inconscientes na sua mente buscam e acham racionalizações para elas.

Mas não penso que o conhecimento político é impossível, só que é raro. E algumas pessoas têm posições melhores que outras. Eis uma coisa a se pensar: em que medida as suas crenças políticas combinam com a sua personalidade? Por exemplo, você tem os traços de personalidade básicos que as pessoas com a sua orientação política costumam ter? Se sim, você provavelmente já fez a coisa terrível da qual eu estou reclamando. Por outro lado, se você não tem, então pode ser que você seja uma das poucas pessoas objetivas.

Aqui está, por exemplo, um bom teste de objetividade. Se você encontra um direitista (conservador ou libertário) que é vegano, então essa pessoa pode na verdade ser racional, ao contrário da maioria da humanidade. Pode ser que ela esteja levando em conta razões e evidências. A maior parte das pessoas direitistas se recusam a pensar no veganismo, porque se preocupar com animais simplesmente não combina com sua personalidade. Não importa o que você diga a elas, pois não se importam com o conteúdo cognitivo das ideias.

Eis outra implicação: Seja minimamente tolerante com as crenças políticas das outras pessoas. O motivo provável de elas discordarem de você não é que são malvadas ou que amam ignorar fatos. O motivo provável é que têm um perfil de personalidade em alguma medida diferente do seu, que foi em grande parte programado geneticamente nelas, assim como o seu perfil de personalidade foi geneticamente programado em você.

Como a ideologia muda

O que me fez pensar neste assunto recentemente foi notar como o “conservadorismo” mudou ao longo dos últimos anos. É bem impressionante. Alguns conservadores sérios, como George Will, deixaram o Partido Republicano. Mas a maioria esmagadora dos republicanos não se importa com a mudança de forma alguma.

O tempo todo, quando eu estava crescendo, os republicanos eram falcões anti-Rússia. Quanto mais republicano você era, mais você odiava os russos. Isso continuou até 2016, quando os republicanos de repente perceberam que seriam bom estabelecer boas relações com a Rússia, etc.

Os republicanos costumavam também apoiar “os valores da família”, defendiam que o caráter moral é importante num líder, que precisamos cristãos bons e devotos no governo, etc. Mais uma vez, só até 2016, quando perceberam que essas coisas não são de fato importantes.

Há alguns vídeos bem impressionantes para nos lembrar do passado do partido:

  1. Eis como John McCain respondeu a ataques pessoais a Obama por parte dos próprios seguidores de McCain: https://www.youtube.com/watch?v=JIjenjANqAk.(2) Ele corrige seus apoiadores e explica que Obama é um homem decente que meramente tem algumas discordâncias políticas em relação a McCain. Hoje, quase nenhum republicano faria isso. (Talvez Romney faria.)
  2. Eis como George H. W. Bush e Ronald Reagan responderam a uma pergunta sobre imigração: https://www.youtube.com/watch?v=YsmgPp_nlok.(3) O vídeo é de um debate quando Bush e Reagan estavam competindo à nomeação como candidatos do Partido Republicano à presidência. Ambos falam do quão essencial é a imigração, e quantas pessoas decentes eram imigrantes ilegais. Nenhum republicano hoje faria isso.

Isso é parte do motivo pelo qual eu digo que a ideologia não trata de ideias. Se as pessoas de fato se preocupassem com ideias, um partido não poderia mudar radicalmente de posição e ainda ter basicamente os mesmos apoiadores e os mesmos opositores. O exemplo 1 sugere que a ideologia talvez nem tenha a ver com personalidade também. É apenas tribalismo completamente sem significado.

A propósito, note a diferença entre as elites e as massas. As elites tendem a não gostar quando um partido muda de posição, e às vezes deixam o partido. As massas, no entanto, não se importam. É porque as elites — por exemplo, comentaristas conservadores, ou líderes do Partido Republicano — realmente acreditam em sua ideologia. Para as massas, professar uma ideologia é bem similar a empunhar uma bandeira dizendo “viva o meu lado” — e quem se importa se mudarem a aparência da bandeira?

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Publicado originalmente em Fake Nous, 2 de janeiro de 2021.

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