Há alguns anos, uma escola cristã bem conhecida me convidou para falar ao corpo docente e à administração sobre esta pergunta: “O que é uma faculdade ou universidade cristã?” Em minha chegada, o deão me conduziu em um tour pelo campus. Durante o percurso, observei esta inscrição na porta de um escritório: “Departamento de Religião”. Quando chegou a hora de falar ao corpo docente naquela noite, mencionei a inscrição que eu tinha visto e perguntei se o departamento sempre tivera aquele nome. Um idoso membro do corpo docente respondeu que anos antes o departamento se chamava “Departamento de Teologia”. Ninguém pôde me dizer por que o nome do departamento fora mudado.
“Religião” ou “teologia” – que diferença faz? No mundo acadêmico, o estudo de religião tem sido tradicionalmente incluído no contexto mais amplo de sociologia ou de antropologia, porque religião tem a ver com as práticas de adoração de seres humanos em ambientes específicos. A teologia, por contraste, é o estudo de Deus. Há uma grande diferença entre estudar apreensões humanas da religião e estudar a natureza e o caráter de Deus. O primeiro estudo é puramente natural em sua orientação. O segundo é sobrenatural, lidando com o que está acima e além das coisas deste mundo.
Depois de explicar isto em minha palestra ao corpo docente, acrescentei que uma verdadeira faculdade ou universidade cristã é comprometida com a premissa de que a verdade suprema é a verdade de Deus e de que ele é o fundamento e a fonte de todas as outras verdades. Tudo que aprendemos – economia, filosofia, biologia, matemática – tem de ser entendido à luz da realidade abrangente do caráter de Deus. Essa é a razão por que, na Idade Média, a teologia foi chamada “a rainha das ciências”, e a filosofia, “sua criada”. Hoje, a rainha foi deposta de seu trono e, em muitos casos, mandada ao exílio, e um suplantador reina. Substituímos a teologia pela religião.
TEOLOGIA DEFINIDA
Neste livro, estamos interessados na teologia, especificamente a teologia sistemática, que é um estudo coerente e ordeiro das principais doutrinas da fé cristã. Neste capítulo, oferecerei uma breve introdução à ciência da teologia sistemática e algumas definições básicas.
A palavra teologia compartilha de um sufixo -logia, como ocorre na designação de muitas disciplinas e ciências, tais como biologia, fisiologia e antropologia. O sufixo vem da palavra grega logos, que achamos no começo do evangelho de João: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus” (Jo 1.1). O vocábulo grego logos significa “palavra”, ou “ideia”, ou, como um filósofo a traduziu, “lógica” (é também desta palavra que obtemos a nossa palavra lógica). Portanto, quando estudamos biologia, estamos considerando a palavra ou a lógica da vida. Antropologia é a palavra ou a lógica sobre os humanos, sendo antrōpos a palavra grega que significa homem. A primeira parte da palavra teologia vem do vocábulo grego theos, que significa “deus”. Portanto, a teologia é a palavra ou a lógica sobre Deus mesmo.
Teologia é uma palavra muito abrangente. Refere-se não somente a Deus, mas a tudo que Deus nos revelou na Escritura Sagrada. Como parte da disciplina de teologia, há o estudo de Cristo, que chamamos “cristologia”. Teologia inclui também o estudo do Espírito Santo, que chamamos “pneumatologia”, o estudo do pecado, que é chamado “hamartiologia”, e o estudo das coisas futuras, que chamamos “escatologia”. Estas são subdivisões da teologia. Os teólogos também falam da “teologia propriamente dita”, que tem referência específica ao estudo de Deus mesmo.
Muitos se sentem à vontade com a palavra teologia, mas se retraem quando ouvem o termo qualificador sistemática. Isto acontece porque vivemos num tempo de aversão disseminada para com certos tipos de sistemas. Respeitamos sistemas inanimados – sistema de computadores, sistemas de alarmes de incêndio e sistemas de circuitos elétricos – porque entendemos sua importância para a sociedade. Mas, no que diz respeito a sistemas de pensamento ou entendimento da vida e do mundo de uma maneira coerente, as pessoas não se sentem à vontade. Parte da razão para isso tem a ver com uma das filosofias mais influentes que surgiram na história do Ocidente – o existencialismo.
A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA
O existencialismo é uma filosofia de existência. Pressupõe que não há tal coisa como uma verdade essencial, mas que, em vez disso, há uma existência distintiva – não essência, mas existência. Por definição, o existencialismo tem aversão por um sistema genérico de realidade. É um antissistema que se apega a verdades, mas não à verdade, e a propósitos, mas não ao propósito. O existencialismo não acredita que a verdade possa ser entendida de uma forma ordeira, porque eles veem o mundo, em última análise, como caótico, sem significado ou propósito. A pessoa enfrenta a vida simplesmente como ela acontece; não há qualquer ponto de vista abrangente que dê sentido a tudo da vida, porque, em última análise, a vida não faz sentido.
O existencialismo tem causado um impacto tremendo na cultura ocidental, juntamente com seus filhos, o relativismo e o pluralismo. O relativista diz: “Não há verdade absoluta, exceto a absoluta verdade de que não há absolutamente nenhuma verdade. Toda verdade é relativa. O que é verdadeiro para uma pessoa pode ser falso para outra”. Não há nenhum esforço para colocar em harmonia pontos de vista opostos (algo que um sistema procuraria fazer), porque, de acordo com os relativistas, não há qualquer possibilidade de um entendimento sistemático da verdade.
Essa filosofia tem causado também um grande impacto na teologia, até nos seminários. A teologia sistemática está se tornando rapidamente uma disciplina esquecida, não somente por causa do impacto do pensamento existencialista, do relativismo e do pluralismo, mas também porque algumas pessoas entendem erroneamente a teologia sistemática como uma tentativa de enquadrar a Bíblia em um sistema filosófico. Alguns têm tentado enquadrar a Bíblia em um sistema filosófico, como nos casos de René Descartes e seu racionalismo e de John Locke e seu empirismo. Aqueles que fazem essas tentativas não ouvem a Palavra de Deus ou não procuram entendê-la em seus próprios termos; em vez disso, procuram fazer com que um sistema pré concebido se imponha sobre as Escrituras.
Na mitologia grega, um bandido chamado Procusto atacava as pessoas e lhes cortava as pernas para ajustá-las ao comprimento de uma cama de ferro, em vez de simplesmente alongar a cama. Tentativas de encaixar a Escritura num sistema de pensamento pré-concebido são igualmente desorientadas, e o resultado tem sido uma aversão à teologia sistemática. No entanto, a teologia sistemática não tenta enquadrar a Escritura numa filosofia ou num sistema, mas, em vez disso, procura extrair os ensinos da Escritura e entendê-los de forma ordeira e temática.
PREMISSAS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA
A teologia sistemática está baseada em algumas premissas. A primeira é a de que Deus revelou-se a si mesmo não somente na natureza, mas também por meio dos escritos dos profetas e dos apóstolos e que a Bíblia é a Palavra de Deus. É teologia par excellence. É o completo logos de theos.
A segunda premissa é que, ao revelar-se a si mesmo, Deus o faz de acordo com seu próprio caráter e natureza. A Escritura nos diz que Deus criou um cosmos ordeiro. Ele não é autor de confusão, porque nunca se confunde.
Deus pensa claramente e fala de uma maneira inteligível, com o propósito de ser entendido.
Uma terceira premissa é que a revelação de Deus na Escritura manifesta as qualidades de seu caráter. Há uma unidade na Palavra de Deus, apesar da diversidade de seus autores. A Palavra de Deus foi escrita durante muitos séculos, por muitos autores e aborda uma variedade de temas, mas dentro dessa diversidade há unidade. Toda a informação que achamos na Escritura – coisas futuras, a expiação, a encarnação, o julgamento de Deus, a misericórdia de Deus, a ira de Deus – têm sua unidade em Deus mesmo. Por isso, quando Deus fala e se revela, há uma unidade nesse conteúdo, uma coerência.
A revelação de Deus é também consistente. Alguém já disse que consistência é o embaraço de mentes inferiores, mas, se isso fosse verdade, teríamos de dizer que Deus tem uma mente inferior, porque em seu ser e caráter ele é totalmente consistente. Ele é o mesmo ontem, hoje e para sempre (Hb 13.8).
Estas premissas guiam o teólogo sistemático à medida que ele realiza sua obra de considerar todo o espectro da Escritura e inquire sobre como ela se harmoniza no todo. Em muitos seminários, o departamento de teologia sistemática é separado do departamento de Novo Testamento e do departamento de Antigo Testamento. Isto acontece porque o teólogo sistemático tem um foco diferente do professor de Antigo Testamento e do professor de Novo Testamento. Eruditos bíblicos se focalizam em como Deus se revelou a si mesmo em vários momentos no decorrer do tempo, enquanto o teólogo sistemático toma essa informação, reúne-a toda e mostra como essa informação se ajusta em um todo significativo. Isto é, certamente, uma tarefa intimidante, e estou convencido de que ninguém já a fez perfeitamente.
Visto que estou engajado em teologia sistemática, sempre fico admirado com a coerência específica e intrincada do escopo da revelação divina. Teólogos sistemáticos entendem que cada ponto na teologia aborda cada
outro ponto. Quando Deus fala, cada detalhe que ele profere tem um impacto em cada outro detalhe. Essa é a razão por que nossa tarefa constante é ver como todas as peças se ajustam no todo orgânico, significativo e consistente.
fonte: Somos Todos Teólogos [R.C Sproul]
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