Humanos ou Deus: _afinal quem escreveu a Bíblia ?





“Deus falou. Eu creio. Isso resolve a questão.” Assim diz alguns que por não conseguirem argumentar finalizam a discussão  sobre a Bíblia. Mas, se Deus escreveu a Bíblia, por que Paulo disse em sua carta a Filemom: “Eu, Paulo, de próprio punho, o escrevo” ( Fm 19)? Ou por que lemos no final do evangelho de João: “Este é o discípulo que dá testemunho a respeito destas coisas e que as escreveu” (Jo 21:24)? Então, quem escreveu a Bíblia: humanos ou Deus?

TEORIAS SOBRE A INSPIRAÇÃO


Todos que reivindicam o nome de “cristãos” concordariam em que as Escrituras são inspiradas. Entretanto, uma ampla variedade de significados tem sido vinculada ao adjetivo “inspiradas”.

Teoria de intuição.

De acordo com esse ponto de vista, os escritores da Bíblia exibiram uma intuição religiosa natural que também se acha em outros grandes pensadores e filósofos religiosos, como Platão e Confúcio. Obviamente, as absolutas afirmações de verdade da Escritura são negadas por aqueles que sustentam esse ponto de vista sobre a inspiração.

Teoria de iluminação.

Esse ponto de vista sustenta que, de alguma maneira, o Espírito de Deus fez objetivamente impressão sobre a consciência dos escritores bíblicos, mas não de um modo essencialmente diferente daquele como o Espírito Santo se comunica com toda a humanidade. A influência do Espírito Santo é diferente apenas em grau, não em tipo.

Teoria dinâmica.

Esse ponto de vista afirma que Deus deu impressões ou conceitos definidos e específicos aos autores bíblicos, mas permitiu que os autores comunicassem esses conceitos em suas próprias palavras. Ou seja, a fraseologia exata da Escritura se deve à escolha humana, enquanto o principal sentido do conteúdo é determinado por Deus.

Teoria de ditado.

Esse ponto de vista afirma que Deus ditou as palavras exatas aos autores humanos. Como estenógrafos de uma corte, os autores da Escritura não exerceram nenhuma vontade humana na composição de seus escritos. Às vezes, aqueles que sustentam a teoria de inspiração verbal e plenária (veja em seguida) são acusados erroneamente de crerem nesse ditado mecânico.

Teoria de inspiração verbal e plenária.

Esse ponto de vista (o que é bíblico, creio) assevera que há uma autoria dual da Escritura. Embora os autores escrevessem enquanto pensavam, sentindo-se seres humanos, Deus superintendeu tão misteriosamente o processo que cada palavra escrita era também a palavra exata que Deus queria fosse escrita – livre de todo erro. Esse ponto de vista, às vezes, é chamado a teoria verbal de inspiração.


A  AUTORIA DUAL DA ESCRITURA

Quando Paulo escreveu uma carta aos cristãos de Corinto, não entrou numa condição estática, recitou a carta para um secretário e, depois, quando terminou, pegou a composição terminada e disse: “Vejamos o que Deus escreveu!”. Como apóstolo, Paulo esperava que seu ensino fosse plenamente crido e obedecido – recebido, de fato, como a própria Palavra de Deus (1 Co 7:40; 14:36-37; 2 Co 2:17; 4:2; Cl 1:25; 1 Ts 2:13; 2 Ts 3:14).

De modo semelhante, evidentemente o Salmo 95 foi escrito por um antigo israelita que liderava outros israelitas em adoração. O salmo começa: “Vinde, cantemos ao SENHOR, com júbilo, celebremos o Rochedo da nossa salvação. Saiamos ao seu encontro, com ações de graças, vitoriemo-lo com salmos” (Sl 95:1-2). Entretanto, centenas de anos depois, o autor de Hebreus citou o Salmo 95 com a frase introdutória “diz o Espírito Santo” (Hb 3:7). Essas inconsistências aparentes (Paulo como autor e sua comunicação como a Palavra de Deus; um israelita antigo e o Espírito Santo como o autor do mesmo salmo) comunicam, de fato, uma grande verdade sobre a Escritura: sua autoria dual. Cada palavra na Bíblia é a palavra de um autor humano consciente e, ao mesmo tempo, a palavra exata que Deus tencionava para a revelação de si mesmo.

VARIAÇÃO NA AUTORIA DUAL


Como é evidente de uma olhada superficial na Bíblia, Deus se revelou “muitas vezes e de muitas maneiras” (Hb 1:1). Alguns profetas do Antigo Testamento fizeram denúncias orais, frequentemente com a mesma frase introdutória: “Assim diz o SENHOR” (por exemplo, Is 7:7; Ez 2:4; Am 1:3; Ob 1:1; Mq 2:3; Na 1:12; Ag 1:5; Zc 1:3; Ml 1:4). Em outras ocasiões, foram dadas aos servos reveladores de Deus visões e profecias, quando, às vezes, os próprios profetas admitiam sua ignorância de todo o significado de suas proclamações (Dn 12:8-9; 1 Pe 1:10-12). Em outros gêneros, o papel consciente do autor em compor ou selecionar o material é mais evidente no texto. Por exemplo, no começo de seu evangelho, Lucas escreveu:


Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído (Lc 1:1-4).


Observe que Lucas não disse: “Eu orei e o Espírito Santo trouxe à minha mente as histórias de Jesus para eu escrever”. Lucas foi um historiador – ele se engajou em pesquisa histórica real. Mas, como um companheiro inspirado dos apóstolos, Lucas foi também um agente revelador de Deus. De modo semelhante, o papel de Paulo em compor suas próprias cartas está inegavelmente evidente no texto. Por exemplo, em Gálatas 4:19-20, Paulo se exasperou com os gálatas por causa da negação implícita do evangelho que ele lhes pregara. Paulo escreveu: “Meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós; pudera eu estar presente, agora, convosco e falar vos em outro tom de voz; porque me vejo perplexo a vosso respeito”. Sem dúvida, dependendo da situação, os autores eram mais ou menos conscientes da revelação divina (por exemplo, transmitir uma mensagem profética de “Assim diz o SENHOR” versus a escrita de uma carta pessoal).


Boa parte da Bíblia surgiu como literatura situacional (documentos dirigidos a pessoas específicas que enfrentavam situações históricas específicas); por isso, devemos perguntar como essa literatura situacional pode ser a Palavra de Deus atemporal. Os muçulmanos, por exemplo, têm no Alcorão poesia que é, na maior parte, abstrata. Essa poesia chegou a Maomé, afirmam os muçulmanos, em pronunciamento estático. Em contraste, a Bíblia dá testemunho de que Deus se revelou na história por maneiras antecipatórias, consistentes e repetidas. Ou seja, Deus falou repetidas vezes ao seu povo; ele foi consistente em sua mensagem; e, embora Deus se dirigisse ao povo na situação pela qual passavam, sua revelação anterior antecipava e apontava para uma intervenção culminante que veio finalmente na vida, morte e ressurreição de Cristo. Mas não foi em poesia abstrata, e sim na realidade da vida diária, que a Palavra de Deus lhes foi dada. Surpreendentemente, quando a Palavra de Deus se tornou carne (na encarnação), foi na normalidade aparente da vida que ele se manifestou.

ALGUMAS IMPLICAÇÕES DA AUTORIA DUAL

O fato de a Bíblia se apresentar como de autoria dual tem várias implicações na maneira como lidamos com ela:

1. O propósito claro do autor humano é um bom lugar para começarmos no entendimento da Bíblia.

A Escritura não pode significar menos do que os autores humanos tencionavam conscientemente. Sem dúvida, há passagens em que o autor humano confessa sua ignorância da revelação que lhe foi dada (por exemplo, Dn 12:8-9), mas são exceções. Em geral, os autores humanos pareciam fortemente cônscios de transmitir mensagens oportunas às audiências de seu tempo.

2. Deus, como o Senhor da história e da revelação, incluiu padrões ou figuras de que os autores humanos não tinham pleno conhecimento.

Sob a mão soberana de Deus, suas intervenções históricas anteriores foram, em si mesmas, proféticas – apontavam para Cristo. Sobre as regulações dadas a Israel no Antigo Testamento, o autor de Hebreus diz: “A lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas” (Hb 10:1). De modo semelhante, Paulo nota que a união de gentios e judeus na obra salvadora de Cristo era um “mistério” presente na Escritura, mas não revelado totalmente até que o Espírito Santo declarou isso por meio dos profetas e apóstolos do Novo Testamento (Ef 3:3-6). Devemos buscar afirmações explícitas na revelação posterior para esclarecer essa intencionalidade divina. Devemos ser advertidos de antemão contra acharmos detalhes simbólicos ou proféticos no Antigo Testamento, quando nenhum autor do Novo Testamento proveu interpretação autoritária do texto.

3. Às vezes, afirma-se que a Bíblia nunca pode significar algo que o autor humano não sabia conscientemente quando escreveu.

É possível, porém, afirmar uma abordagem hermenêutica baseada na intenção do autor, sem recorrer à afirmação anterior. Os autores bíblicos tinham consciência de ser usados por Deus para comunicar sua palavra e acreditavam que sua revelação era parte de um grande esquema de história. Os autores do Antigo Testamento sabiam que estavam subindo pelos degraus da revelação, mas poucos, se havia algum, sabiam quão perto estavam do topo da escada (ou seja, de Cristo).

Embora não pudessem conhecer todos os eventos futuros, os profetas certamente não negariam o controle providencial de Deus sobre a história, o que ultrapassava a reflexão consciente deles .

A INSPIRAÇÃO E A ENCARNAÇÃO

Com frequência, comenta-se que a autoria dual (divino-humana) da Escritura pode ser comparada com o Senhor Jesus Cristo, que é tanto plenamente humano como plenamente Deus.

Em algum grau, essa comparação pode ser útil. Como ninguém pode explicar como as naturezas divina e humana podem estar totalmente presentes na pessoa de Jesus, também não se pode explicar totalmente como Deus superintendeu de tal modo a redação da Bíblia que cada palavra é divinamente inspirada e, ao mesmo tempo, uma palavra escolhida por um autor humano. Para afirmar as naturezas divina e humana de Cristo e a autoria divino-humana da Escritura, não precisamos ser capazes de explicar totalmente o mistério dessas verdades reveladas.


A comparação perspicaz de T. C. Hammond entre inspiração e encarnação é digna de ser citada na íntegra:


“A revelação viva foi trazida misteriosamente ao mundo sem a intervenção de um pai humano. O Espírito Santo foi o Agente designado. A revelação escrita veio à existência por um processo semelhante, sem a ajuda de abstrações filosóficas humanas. O Espírito Santo foi, de novo, o Agente designado. A mãe de nosso Senhor continuou a ser uma mãe humana, e suas experiências durante a gravidez parecem ter sido as mesmas de toda mãe humana – exceto pelo fato de que ela foi conscientizada de que seu filho seria o tão aguardado Redentor de Israel. Os autores dos livros bíblicos continuaram a ser autores humanos, e as experiências deles parecem ter sido igualmente naturais, embora, às vezes, estivessem cientes de que Deus estava dando ao mundo, por meio deles, uma mensagem de enorme importância (por exemplo,“Eu recebi do Senhor o que também vos entreguei...” – 1 Co 11:23). Maria, a mãe de nosso Senhor, trouxe ao mundo outros filhos pelo processo normal de nascimento. Os escritores dos livros bíblicos talvez tenham escrito outras cartas puramente pessoais que não tinham necessariamente importância canônica. Ainda mais importante é o fato de que nenhum estudante deveria deixar de assimilar o fato de que a vida pessoal, divino-humana, de nosso Senhor é uma só, indivisível por qualquer meio de análise humana. Em nenhuma ocasião registrada, podemos dizer que num momento havia pensamento puramente divino, e, no outro momento, pensamento puramente humano. As duas naturezas estavam unidas em uma Pessoa indissolúvel. Desde a manjedoura até a cruz, devemos sempre pensar no Senhor e descrevê-lo à luz desse ponto de vista. De modo semelhante, embora a analogia não seja bem completa, o estudante terá poupado muito pensamento incorreto, confusão desnecessária e danos à sua fé ao observar que, nas Escrituras, os elementos divino e humano são mesclados de maneira que, em poucos casos, podemos analisar, com alguma certeza, o relato para demonstrarmos elementos puramente humanos.”

Deve-se notar também que a dimensão divino humana da Bíblia diz respeito à sua autoria, e não à sua própria natureza. Ouvimos reverentemente a Bíblia como a Palavra de Deus escrita, mas adoramos a Jesus como o Filho de Deus encarnado.



SOURCES FOR FURTHER STUDY

Carson, D. A. “Approaching the Bible”. Em The New Bible Commentary: 21st Century Edition, editado por D. A. Carson et al., 1-19. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1994.

Erickson, Millard J. Christian Theology. 2nd ed. Grand Rapids: Baker, 1998. (Ver cap. 10, pp. 224-45).

Marshall, I Howard. Biblical Inspiration. Grand Rapids: Eerdmans, 1982.

Esse resumo de cinco teorias é extraído de Millard J. Erickson, Christian Theology, 2nd ed. (Grand Rapids: Baker, 1998), 231-33. Erickson chama a teoria de inspiração verbal e plenária de “teoria verbal”.


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