Graças a Eusébio de Cesaréia, em sua obra “História Eclesiástica”, Orígenes é o personagem da Igreja primitiva que mais legou escritos e dados biográficos à posteridade. Foi conhecido, à sua época, pelo apelido de Adamâncio (“o homem de aço”), o que, a título de curiosidade ou infeliz coincidência, nos remete ao “adamantium”, liga metálica fictícia que impregna as garras do popular Wolverine, da não menos popular série X-Men de nossos dias. Coincidência ou não, o fato é que Orígenes desempenhou, à sua maneira, o papel de uma espécie de super-herói da sua época, tais foram, por um lado a sua produção literária abundante, e, por outro, inúmeras viagens e algumas atitudes radicais.
Tudo indica que Orígenes tenha nascido em uma família cristã em Alexandria, por volta do ano 185, tendo recebido sólida formação religiosa (sob Clemente) e também secular, completada na escola do filósofo Amônio Sacas, pai do neoplatonismo, o que lhe permitiu ter uma erudição filosófica incomparável entre os Pais da Igreja. No ano 202, seu pai Leônidas foi martirizado durante a perseguição do imperador Sétimo Severo, e os bens da família foram confiscados. O jovem Orígenes incentivou seu pai a ser fiel até a morte e diz-se que sua mãe teve que esconder suas roupas para que ele não saísse de casa e fosse preso. Para poder manter a mãe e seis irmãos menores, Orígenes abriu uma escola de gramática (literatura) e, pouco depois, diante da ausência de quadros qualificados, já que muitos haviam fugido ou sido mortos pela perseguição, o bispo Demétrio de Alexandria incumbe a Orígenes, então com 18 anos de idade, a dirigir a escola de catecúmenos, enquanto procurava enfrentar a forte perseguição aos cristãos. Por algum tempo, seguiu com as duas escolas, mas quando a família teve condições de se sustentar por si própria, dedicou-se exclusivamente à catequese e, nesse particular, opera-se um verdadeiro milagre para a época: sua reputação entre os alexandrinos era tão alta que muitos pagãos e gnósticos passaram a freqüentar a escola de catecúmenos para aprender diretamente do jovem mestre.
Orígenes levava uma vida austera, rigorosa, a ponto de ser quase certo que, interpretando ao pé da letra Mateus 19:12, castrar-se a si mesmo e fazer-se eunuco para Deus, atitude extrema que o impediu de ser ordenado sacerdote por Demétrio. O historiador Paul Johnson (“História do Cristianismo”, Ed. Imago, 2001, pág. 75), qualificando-o de “fanático religioso”, relata que Orígenes “abriu mão de seu emprego e vendeu seus livros para concentrar-se na religião. Dormia no chão, não comia carne, não bebia vinho, tinha apenas um casaco e não possuía sapatos”. Já próximo dos 30 anos de idade, deixa a direção da escola com Héraclas e, seguido de alguns discípulos que ele próprio escolheu, aprofunda-se nos estudos bíblicos e filosóficos, passando a escrever sua vasta obra, incentivado por Ambrósio, um homem rico de Alexandria que, pela pregação de Orígenes, havia abandonado a heresia valentiniana convertendo-se à ortodoxia da Igreja. Ambrósio tinha uma profunda sede intelectual e, vendo em Orígenes as qualidades do pensamento que tanto prezava, passa a financiá-lo para que suas idéias sejam conhecidas de todos. Nesse período, Orígenes também viaja muito, visitando Roma, Cesaréia, Jordânia, chegando a ser levado com escolta militar a Antioquia, onde a mãe do imperador Alexandre Severo, Júlia Maméia, desejava conhecer melhor o cristianismo.
Orígenes adquire, então, o status de uma espécie de “celebridade mundial” da época, segundo relata Hans von Campenhausen (“Os Pais da Igreja”, Ed. CPAD, 2005, pág. 51): “o governador da Arábia solicitou ao seu colega egípcio e também escreveu ao bispo Demétrio uma carta amável pedindo que fosse permitido que Orígenes desse algumas palestras em sua presença”. Por volta do ano 231, é convidado pelos bispos gregos a ir a Atenas discutir com os grupos de heréticos. De passagem, visita Cesaréia da Palestina, onde os bispos Teoctisto e Alexandre o ordenam sacerdote. De volta a Alexandria, Demétrio se irrita profundamente com esse fato e, reunindo um pequeno concílio, o exila do Egito e, pouco depois, o suspende da ordem sacerdotal. Orígenes vai, então, a Cesaréia, onde é bem recebido pelos amigos palestinos, que, a exemplo de outras igrejas do Oriente, não dão importância alguma à sentença de Demétrio.
Moderno a seu tempo, Orígenes dirige um tipo de escola para “simpatizantes” do cristianismo, ou seja, jovens pagãos que queriam entender melhor o que a nova religião pregava, e que Orígenes apresentava-lhes a visão cristã dos grandes problemas filosóficos. Entre suas muitas viagens, uma feita à Jordânia reconduz o bispo Berilo de Bostra à ortodoxia, e aproveita para discutir com um grupo de cristãos que afirmavam que a alma morre com o corpo e ressuscita com ele. Entretanto, nova perseguição irrompe sob o comando do imperador Décio, em 250, e Orígenes é preso e torturado, não com o fim de matá-lo, mas para que renegasse a sua fé, visto que uma eventual apostasia sua produziria efeitos notáveis nos demais fiéis, já que, dos seus contemporâneos, era a figura mais relevante do cristianismo. Pouco tempo depois, Décio morre e Orígenes é liberto, morrendo pouco depois, aos 69 anos de idade, provavelmente em 254. No século XIII, o seu túmulo era ainda visível em Tiro, na igreja chamada do Santo Sepulcro.
Orígenes deixou uma obra gigantesca, sendo que o catálogo compilado por Eusébio dá conta de 2.000 escritos, enquanto Epifânio diz que Orígenes escreveu impressionantes 6.000 obras. O historiador Paul Johnson (ob. cit.) diz que “parece que trabalhava o dia inteiro e a maior parte da noite e era um escritor compulsivo. Até o intrépido Jerônimo, mais tarde, reclamaria: ‘alguém já leu tudo que foi escrito por Orígenes?’. Seus comentários às escrituras eram tão vastos que nenhum foi transmitido na íntegra. Alguns foram perdidos, outros sobrevivem como paráfrases drásticas”. Eusébio justifica essa alta produtividade com o fato de que “sete estenógrafos que se revezavam em intervalos definidos, e outros tantos escreventes de livros e mulheres calígrafas” (“Histórica Eclesiástica”, VI, 23, 2), provavelmente patrocinados por Ambrósio. De qualquer maneira, 800 desses escritos chegaram até nossos dias. Poucos, entretanto, trazem os textos originais, já que a maioria foi expurgada pelas controvérsias origenistas posteriores, e outra parte sobreviveu apenas por meio de traduções sofríveis. Dentre essas obras, alguma se destacam. A Hexapla é a primeira tentativa cristã de estabelecer o cânon da Escritura de uma maneira minimamente científica (dentro do que se podia considerar ciência à época). A maior parte dela foi perdida, e consistia numa exposição paralela, em seis colunas, do texto hebraico do Antigo Testamento, da sua transliteração em letras gregas, e as quatro versões gregas que circulavam naquela época: a de Áquila, a de Símaco, a Septuaginta e a tradução de Teódoto. Em alguns trechos, como em alguns Salmos, diante de outras versões, Orígenes expandia a Hexapla para nove colunas. A Hexapla tomou a maior parte da vida de Orígenes, que sempre acrescentava, corrigia ou revia algumas posições.
“Scholia” é a obra em que Orígenes expõe alguns comentários breves sobre determinados textos em que a interpretação parecia difícil ou interessante. Apenas um ou outro fragmento dessa obra chegou até nós. Em suas Homilias, escritas depois do rompimento com Demétrio, encontra-se a natureza da pregação de Orígenes, que se revela mais como uma exortação moral, sem fazer profundas exegeses do texto bíblico. Boa parte das Homilias se perdeu, lamentavelmente, mas restaram muitos dos seus Comentários (Evangelho de São Mateus, de São João, sobre a Epístola aos Romanos, sobre o Cântico dos Cânticos, etc.), que são as principais fontes pelas quais é possível conhecer o método exegético de Orígenes, que, por sua vez, é uma chave importante para a compreensão do restante de sua teologia.
No campo apologético, Orígenes escreveu “Contra Celsum”. Celso era um filósofo pagão, que havia escrito uma obra anti-cristã chamada “O Verdadeiro Verbo”, que tinha alcançado significativa repercussão, sobretudo por ter sido bem escrito e fundamentado. Foi Ambrósio que pediu a Orígenes que refutasse Celso. A princípio, ele não teve muito interesse, mas finalmente decidiu aceitar os apelos insistentes de Ambrósio e refutou um por um os argumentos de Celso, fazendo dessa obra um testemunho interessante de como foi travado o combate entre cristãos e pagãos no começo da Igreja.
Por fim, a sua ora mais importante é “De principiis” (“Sobre os primeiros princípios”), em que Orígenes faz uma exposição sistemática de sua teologia, cuja maior parte sobreviveu por meio de uma tradução para o latim feita por Rufino, que, como era relativamente comum àquela época, tomou a infeliz liberdade de “corrigir” algumas opiniões de Orígenes. Quanto a essas traduções, há uma certa controvérsia: alguns dizem que Rufino alterou o pensamento de Orígenes para esconder suas idéias, que ele considerava por demais audaciosas para a ocasião, enquanto outros dizem que Rufino fez isso para favorecer o movimento origenista a partir do séc. IV, que distorceu e usou a seu bel prazer as profundas especulações teológicas de Orígenes.
Apesar de ter se castrado em obediência a uma interpretação literal da Bíblia, o fato é que Orígenes estava muito longe de ser literalista em sua interpretação do texto sagrado, sendo que ele acreditava firmemente na inspiração literal de cada palavra da Escritura. Para ele, não havia nela nenhuma palavra ou letra gratuita, que não contivesse em si um mistério. Essa é a principal razão que levou Orígenes a dedicar tanto tempo à Hexapla, ou seja, a restaurar o texto bíblico original.
Entretanto, o verdadeiro sentido da Bíblia nem sempre era aquele que resultava de uma interpretação literal. Para ele, havia uma necessidade premente de se interpretar a Bíblia ‘espiritualmente’, pelo que Orígenes desenvolveu a doutrina (que havia recebido ainda incipiente de Clemente) de que um texto bíblico tem – ou pode ter – três sentidos diferentes, mas complementares: um sentido literal ou físico, um sentido moral ou psíquico, e um sentido intelectual ou espiritual. Esses princípios exegéticos são apresentados em “De principiis” IV 2,4-5: “de três maneiras devemos gravar na alma os sentidos das Santas Escrituras: o simples deve edificar-se com a carne da Escritura – assim chamamos a concepção imediata –, o que progrediu um pouco edifica-se mais com sua alma, e o perfeito... se edifica com a lei espiritual, que contém a sombra dos bens futuros (Cl 2:17; Hb 10:1). Pois como o homem se compõe de corpo, alma e espírito, assim também a Escritura... Mas como existem certos textos da Escrituras que... não contêm de maneira alguma o corporal, em muitas passagens devemos buscar unicamente a alma e o espírito da Escritura” (citado por Hubertus R. Drobner no “Manual de Patrologia”, Ed. Vozes, 2003, pág. 147).
Todavia, nem sempre Orígenes seguia essa tri-partição, já que se preocupava muito mais com as interpretações alegóricas. Se ele interpretava um milagre relatado no Novo Testamento, por exemplo, primeiro fazia questão de ressaltar a efetiva existência literal daquele milagre para, somente depois, tirar do relato as possíveis alegorias. Por isso, deu tanta importância à tipologia do Velho Testamento, fazendo do sacrifício de Isaque, por exemplo, um ‘tipo’ ou ‘figura’ da paixão de Cristo, bem como da circuncisão como um tipo de batismo. A respeito da tipologia origenista, Drobner (ob. cit.) afirma: “como, em virtude da inspiração verbal pelo Espírito Santo, toda palavra do texto bíblico deve ter um sentido digno e adequado a Deus, este deve ser buscado nos planos mais elevados. O sentido moral tira da Bíblia, além dos mandamentos e prescrições verbais nela contidos, as orientações de ação para a vida cristã, como é esperado pela comunidade sobretudo na pregação. O sentido místico, enfim, cumpre três funções: abre tipologicamente o Antigo Testamento como profecia para Cristo; interpreta as declarações de fé da história da salvação; e explica a esperança escatológica dos cristãos”.
Para Orígenes, o texto bíblico estava impregnado de profundos mistérios em cada palavra, que deviam ser extraído através das alegorias, criando um verdadeiro dicionário de interpretações alegóricas, como “cavalo” na Bíblia significando “voz”; “hoje” significando “o tempo presente”; “fermento” significando “ensino”; “nuvens” significando “santos”, e por aí vai. Exemplos de sua interpretação bíblica:
Moisés recebeu a ordem de tocar o mar com seu bastão, para que ele se dividisse e se retirasse, dando passagem ao povo de Deus, e que esse elemento das águas, que, para ele, era objeto de temor, obedecesse à vontade divina, formando “à direita e à esquerda” uma “muralha” que não fosse um perigo, mas uma proteção. As vagas refluíram copiosamente, e a água recuada sobre si mesma se encurvou: tornou-se sólida, e o fundo do mar era só areia.Compreendei aqui qual é a bondade do Deus criador. Se obedeceis à sua vontade, se seguis a sua lei, ele obriga até os elementos a agir contra a sua própria natureza para vos servir. Ouvi os antigos dizerem que, nessa passagem do mar, as águas se dividiram em tantas frações quantas são as tribos dos filhos de Israel, e que cada tribo teve seu caminho aberto no mar; a prova estaria nestas palavras do salmo: “Aquele que dividiu o mar Vermelho em frações”... Acreditei que é piedoso não omitir essa observação dos antigos sobre as divinas Escrituras.Qual é o ensinamento que nos é dado aqui? Já dissemos acima a interpretação do Apóstolo. Ele chama a isso “um batismo, realizado em Moisés, na nuvem e no mar” a fim de que vós, que fostes batizados em Cristo, na água e no Espírito Santo, saibais que os egípcios seguem vossas pegadas e querem re conduzir-vos à vossa antiga servidão, isto é, para junto dos “príncipes deste mundo” e dos “espíritos maus”, de quem fostes escravos. Eles procuram alcançar-vos, mas vós desceis à água e saís dela sãos es salvos; tendo lavado as sujeiras dos pecados, subis como “homem novo”, prontos para cantar o “cântico novo”...Porque extermina o egípcio aquele que não faz “as obras das trevas”; extermina o egípcio aquele que não vive segundo a carne, mas segundo o Espírito; extermina o egípcio aquele que expulsa de seu coração os pensamentos manchados e impuros ou não os recebe de modo algum em seu coração, segundo a palavra do Apóstolo: “Tomando o escudo da fé para extinguir todos os dados inflamados do Maligno”. É assim que ainda hoje podemos ver “os cadáveres dos egípcios estendidos na margem”, seus carros e seus cavalos submersos. Podemos ver submerso o faraó em pessoa se vivemos com bastante fé, para que “Deus abata prontamente Satã aos nossos pés” por Jesus, nosso Senhor."“Homilias sobre o Êxodo”, V, 5 tradução J. Fortier (“Para Ler os Padres da Igreja”, Adalbert G-Hamman, Ed. Paulus, 1995, pág. 65)"
Uma meditação de Orígenes:
Se compreendemos qual é a embriaguez dos santos e como ela lhes é prometida para sua alegria, vejamos agora como o nosso Salvador não bebe mais do vinho até que beba com os santos “o vinho novo” no Reino de Deus.Agora meu Salvador ainda se aflige com meus pecados. Meu Salvador não pode estar alegre enquanto permaneço na iniqüidade. Por que não pode? Porque ele é “advogado por nossos pecados junto do Pai”, como declara João, íntimo seu, dizendo que, “se alguém pecou, temos como advogado, junto do Pai, Jesus Cristo, que é sem pecado e que é propiciação por nossos pecados”. Como, pois, poderia ele beber o vinho da alegria, ele, que é advogado por nossos pecados, sendo que eu o contristo, pecando? Como poderia ele estar alegre; ele, que se aproxima do altar como propiciação por mim, pecador; ele, a cujo coração sobe sem cessar a tristeza e minhas faltas? “Beberei desse vinho convosco no Reino de meu Pai” – diz ele. Enquanto não agirmos de maneira a subir ao Reino, ele não pode beber, sozinho, desse vinho; ele, que prometeu beber dele conosco. Ele está, pois, na tristeza enquanto persistimos no desgarramento. Com efeito, se seu apóstolo “chora sobre alguns que pecaram e não fizeram penitências por suas faltas”, que dizer dele, que é chamado filho do amor, que se aniquilou por causa do amor que tinha por nós, que não procurou a sua vantagem, apesar de ser igual a Deus, mas procurou o nosso bem e, por isso, como que se esvaziou de si mesmo? Tendo, pois, procurado assim o nosso bem, agora não nos procuraria mais, não pensaria mais em nossos interesses, não sofreria mais por causa de nossos desgarramentos? Não choraria mais sobre a nossa perdição, ele, que chorou sobre Jerusalém e lhe disse: “Quantas vezes eu quis reunir teus filhos como a galinha reúne seus pintinhos, e tu não quiseste?”. Aquele que tomou sobre si as nossas feridas e sofreu por causa de nós como médico de nossas almas e de nossos corpos negligenciaria agora a corrupção de nossas chagas? ... Portanto, por nós todos, ele está, diante de Deus intercedendo por nós; está no altar, oferecendo a Deus uma propiciação em nosso favor... Ele espera, pois, que nós nos convertamos, que imitemos seu exemplo e que sigamos suas pegadas para se alegrar então conosco e “beber conosco o vinho no Reino do Pai”."Homilia VII sobre Levítico, tradução H. de Lubac (“Para Ler os Padres da Igreja”, Adalbert G-Hamman, Ed. Paulus, 1995, pág. 63)"
Entretanto, Orígenes ajudou a formular boa parte da doutrina ortodoxa cristã. Como lembra Justo L. González (“Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, págs. 210/1), Orígenes sempre fez questão de frisar que Deus não pode ser compreendido por qualquer inteligência humana, porque “Deus é invisível, não apenas no sentido físico, mas também no sentido intelectual, pois não há mente que seja capaz de contemplar a essência divina. Não importa quão perfeito seja nosso conhecimento sobre Deus, devemos constantemente nos lembrarmos que Deus é muito mais elevado do que qualquer coisa que nossa inteligência possa conceber (De principiis, 1.1.5). Deus é a natureza absoluta e intelectual, além de toda definição de essência (Contra Celso 7.38). A linguagem antropomórfica que a Escritura aplica a Deus deve ser entendida alegoricamente, como uma tentativa de nos mostrar alguma faceta da maneira pela qual Deus se relaciona com a criação e com a humanidade. Por outro lado, se há uma coisa que podemos dizer sobre Deus em um sentido quase literal, é que Deus é Um (De principiis 1.1.6). Unidade absoluta, aquela unidade que é diametralmente oposta à multiplicidade do mundo transitório – e que era um dos temas característicos do platonismo contemporâneo – é o principal atributo do ser de Deus. Contudo, este Um inefável também é o Deus triúno da regra de fé da Igreja. Orígenes não apenas conhecia e freqüentemente usava o termo “trindade”, como também contribuiu para o desenvolvimento da doutrina trinitariana, uma vez que sua teologia é uma das principais fontes dos debates trinitarianos que sacudiriam a igreja quase um século mais tarde”.
E não só sobre a Trindade pronunciou-se Orígenes. Justo L. González (ob. cit., pág. 217) mostra o seu cuidado em explicar a doutrina da encarnação:
“Em sua encarnação, o Verbo de Deus se uniu a um intelecto não caído, e por meio dele a um corpo que em nada era diferente do restante dos corpos humanos, embora fosse de origem diferente (De principiis, 2.6.3-4). Ao afirmar que o Verbo se uniu não apenas a um corpo humano, mas também a um intelecto criado – que, embora não caído, é em sua essência semelhante às almas humanas – Orígenes teve o discernimento da necessidade de pressupor em Cristo, não apenas um corpo humano, mas também um intelecto humano.A divindade e a humanidade estão unidas de tal modo em Cristo que podemos atribuir à primeira, ações e condições que correspondem propriamente à última, e vice-versa. Essa é a doutrina da ‘communicatio idiomatum’, ou “comunicação de propriedades”, que mais tarde se tornaria um dos principais dogmas da cristologia Alexandrina. Orígenes insiste que não podemos entender Cristo simplesmente em termos de sua humanidade ou de sua divindade. “Se ele [o intelecto humano] o considera como Deus, vê um mortal; se o considera como homem, ele o vê retornando da sepultura, depois de derrotar o império da morte” (De principiis 2.6.3). A natureza divina e humana existem em um único ser, embora seja impossível explicar como isso pode acontecer. Esse é o maior mistério da fé.Mas de todos os atos maravilhosos e poderosos relatados sobre Ele, este contudo sobrepuja a admiração humana e está além do poder da fragilidade mortal de entender ou sentir: como esse poderoso poder da majestade divina, o próprio Verbo do Pai, a própria Sabedoria de Deus, por meio da qual foram criadas todas as coisas, visíveis e invisíveis, pode ter existido dentro dos limites deste homem que apareceu na Judéia; como é possível crer nisso? Mais ainda, que a Sabedoria de Deus pode ter entrado no ventre de uma mulher, e ter nascido um infante, e ter proferido choros como o choro das crianças pequenas.”
Ainda sobre Orígenes, comenta o historiador Paul Johnson (ob. cit., págs. 75/6):
“O efeito da obra de Orígenes foi a criação de uma nova ciência, a teologia bíblica, por meio da qual cada frase das escrituras era explorada sistematicamente em busca de significados ocultos, alegorias e assim por diante. E, com base nos elementos dessa vasta erudição das escrituras, ele erigiu, em seu livro “Sobre os Princípios”, uma filosofia cristã a partir da qual era possível interpretar todos os aspectos do mundo. Até então, os cristãos ou desprezavam a filosofia, como irrelevante ou pagã, ou simplesmente apropriavam-se de Platão e outros escritores, categorizavam-nos como cristãos incipientes e aplicavam a superestrutura paulina sobre esses fundamentos. Orígenes desdenhou essa tradição, repudiou os filósofos gregos como falsos e construiu uma nova síntese, a partir de conhecimentos sagrados e profanos. Assim, ofereceu ao mundo a primeira teoria do conhecimento concebida por completo de dentro de assunções cristãs, prefigurando tanto os enciclopedistas, como Isidoro de Sevilha, quanto as ‘summae’ sistemáticas dos escolásticos medievais. Com Orígenes, o cristianismo deixou de ser um prolongamento do mundo clássico e tornou-se, intelectualmente falando, um universo próprio. Estava também, pelo menos até então por implicação, tornando-se uma sociedade própria. Orígenes foi o primeiro teórico do clericalismo, bem como de outros aspectos do cristianismo maduro. Suas próprias relações com a Igreja eram tempestuosas. Não pôde ser ordenado por seu próprio bispo de Alexandria; despertou críticas clericais ao pregar na Palestina como leigo; foi ordenado acanonicamente e, portanto, era atacado com freqüência por propagar uma doutrina falsa. Não tinha respeito pelo clero como indivíduos, e, em geral, apresentava um quadro desanimador de sua avareza e ambição. Mas isso, de forma alguma, solapa sua exaltação da dignidade e poder do ofício eclesiástico. Com efeito, pode-se dizer que ele se permite condenar os clérigos justamente por acreditar na indestrutibilidade de sua posição como casta. Orígenes aceitava uma distinção absoluta entre clero e laicidade. Atribuía-lhe um sabor jurídico. Retratava a Igreja, como parte de sua teoria do conhecimento universal, como uma entidade sociológica sagrada. A analogia era com um Estado político. Claro que a Igreja tinha de possuir seus próprios príncipes e reis. É evidente que estes governariam suas congregações muito melhor que os funcionários estatais correspondentes. Sua função era infinitamente mais alta e sagrada, já que administravam coisas espirituais, mas seu status era análogo aos de juízes e governantes seculares e, assim sendo, a laicidade devia-lhes reverência e obediência, ainda que fossem homens inadequados ou ruins.”
Não por acaso, Orígenes foi considerado o maior teólogo da antiga escola de Alexandria. Seu pensamento, ou melhor, suas especulações extremamente audaciosas para a época, granjearam-lhe um número imenso de discípulos, mas, talvez em proporção muito maior, uma quantidade enorme de inimigos. Conseqüentemente, muitas posições suas foram condenadas em vários sínodos de diferentes épocas. Mesmo tendo admiradores do porte de Gregório do Ponto, Eusébio de Cesaréia, Dionísio, o Grande, Atanásio, dos Pais Capadócios (Basílio, o Grande, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa), além de Ambrósio de Milão e Hilário de Poitiers, nenhum deles se animou a defender as suas idéias mais avançadas para a época, sendo que a série de condenações culminou com o concílio convocado por Justiniano em Constantinopla, no ano de 553. Ato contínuo, a polícia imperial confiscou e destruiu boa parte dos escritos de Orígenes, razão pela qual muito do seu pensamento original (com o perdão da redundância) se perdeu.
Entretanto, algo importante sobre Orígenes foi (convenientemente ou não) sublimado e esquecido com todas as controvérsias teológicas que se lhe seguiram, ou seja, o fato de que Orígenes, dada a sua genialidade, trabalhava com hipóteses, exercendo aquilo que melhor sabia fazer: especular. Muitas de suas idéias eram apenas idéias, especulações, indagações que seu espírito investigativo requeria de seu alto nível intelectual. Suas idéias eram expostas de boa fé, mas talvez fossem avançadas demais para a sua época, e tenha lhe faltado o senso de oportunidade e a prudência para perceber que essas mesmas idéias poderiam ser-lhe atribuídas como dogmas, por pessoas que se valeriam de seu nome para justificar posições com as quais Orígenes sequer havia pensado. O próprio Orígenes fazia questão de distinguir entre as suas proposições de fé, aquelas que eram aceitas e defendidas pela ortodoxia da Igreja, e aquelas que eram meramente hipotéticas, como sugestões para que seus discípulos e leitores nelas trabalhassem, a fim de se chegar a um consenso.
Um exemplo disso é a sua posição sobre as almas, que alguns seguidores, dizendo-se “origenistas”, passaram a interpretar como uma prova da reencarnação. Entretanto, Orígenes era contra a doutrina da reencarnação. Nos seus Comentários à Epístola aos Romanos, ele chegou a considerar a teoria do filósofo Basílides, o qual queria basear a reencarnação nas palavras de São Paulo: *Vivi outrora sem lei...* (Rm 7,9). Observa então Orígenes: “Basílides não percebeu que a palavra *outrora* não se refere a uma vida anterior de S. Paulo, mas apenas a um período anterior da existência terrestre que o Apóstolo estava vivendo”. Desta forma, concluía Origenes, “Basílides rebaixou a doutrina do Apóstolo ao plano das fábulas ineptas e ímpias”. Entretanto, muitos pretensos discípulos de Orígenes professaram como verdade de fé não somente a preexistência das almas (delicadamente insinuada por Orígenes), mas também a reencarnação (que o mestre não chegou de modo algum a propor, nem como hipótese).
Para finalizar, uma distinção é essencial: uma coisa é Orígenes; outra muito diferente é o movimento que se tornou conhecido como “origenismo”. O Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs (Ed. Paulus – Ed. Vozes, 2002, pág. 1051) distingue 6 fases do movimento:
1) o próprio Orígenes, ou seja, o conjunto de suas especulações que, com as incompreensões de seus sucessores, constituiu-se na base do origenismo posterior;
2) o segundo momento é dado pelo origenismo tal como o entendem seus detratores entre o séc. III e o IV, Metódio, Pedro de Alexandria e Eustácio de Antioquia: a estes responde a “Apologia de Orígenes”, escrita por Pânfilo. Além da preexistência da alma e da apocatástase (a redenção e salvação final e universal de todos os seres), são contestadas, por uma série de mal-entendidos, a doutrina do corpo ressuscitado e a criação eterna;
3) o dos monges egípcios e palestinos da segunda metade do séc. IV, exposto principalmente por Evágrio Pôntico nos “Kephalaia Gnostica”. Evágrio fez uma “escolástica” do pensamento de Orígenes, suprimindo as tensões internas e omitindo grande parte da doutrina para construir com o restante um sistema: era o modo mais seguro para torná-lo herético, pois a heresia é a supressão e o corte das antíteses que caracterizam a doutrina cristã;
4) o mais importante é o origenismo como o supõem os antiorigenistas dos séculos IV-V, Epifânio, Jerônimo e Teófilo de Alexandria (ao passo que Orígenes é defendido por João de Jerusalém e por Rufino de Aquiléia). Suas proposições devem passar pelo crivo da crítica, pois lhes falta sobretudo senso histórico, o que é bem normal para sua época: não tinham noção alguma do desenvolvimento do dogma, a cuja consciência se chegou bem recentemente, e não julgavam Orígenes a partir de seu tempo. Além do mais, não primavam nem pela compreensão filosófica nem pela teológica. Na realidade, não apreenderam a mudança de mentalidade que separava a Igreja em minoria, perseguida, do tempo de Orígenes, e a Igreja triunfante de sua época, principalmente no que diz respeito à importância de uma cristianização da filosofia para a pastoral do mundo e da necessidade de uma teologia “em exercício”, isto é, em procura.
5) o evagrianismo dos monges palestinos da primeira metade do séc. VI, que viviam nos conventos da obediência de São Sabas, a Grande Laura e a Nova Laura. A principal manifestação de sua doutrina é o “Livro de Santo Hieróteo”, obra do monge sírio Estevão bar Sudayle, que agrava a “escolástica” origenista até chegar a um panteísmo radical.
6) o do tempo da condenação do imperador Justiniano. Os documentos a respeito do Concílio de Constantinopla II não fazem referência expressa a Orígenes, cujo nome foi muito provavelmente acrescentado depois ao cânon 11 (acompanhando os anátemas a Ário, Nestório e Apolinário, entre outros), já que nem o esboço do Imperador, nem a carta em que o papa Virgílio aprova o concílio, tocam no nome de Orígenes. Formalmente, Orígenes não foi considerado um herético, mas boa parte de seus escritos se perdeu depois da condenação dos origenistas. Só no século XX é que a espiritualidade de Orígenes é redescoberta por W. Völker (1931) e a compreensão de sua exegese é obra de H. de Lubac (1950), fazendo com que sua personalidade reencontrasse, 1700 anos depois, suas dimensões essenciais. Atualmente, Orígenes é, dentre os escritores eclesiásticos da antiguidade, o mais lido depois de Agostinho.
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