Por Que Creio em Deus ?



Eu não estava buscando a Deus. Eu pertencia àquela classe de homens, tão comum hoje, que encontram a justificação de sua existência na intensidade de seus sentimentos. Dotado com uma alta sensibilidade, eu me considerava superior aos pobres mortais, dentre a elite que Stendhal costumava chamar de “os poucos felizes”, os eleitos, os que tem cultura e são inteligentes, cujas vidas não são limitadas pela trivialidade e mediocridade do rebanho comum.

Eu não escolhi a Deus. Na verdade, ele não importava para mim. Essa hipótese não era mais necessária para a condição satisfatória da minha psiquê do que foi para o universo mecânico imaginado pelo físico francês Laplace. Outros podiam muito bem se interessar por tais hipóteses. 


Eu não. E quando o meu irmão mencionou que um amigo em comum tivera uma experiência notável com Deus, eu ri educadamente na cara dele. Tais coisas simplesmente não existiam! De ali em diante, ele teve o cuidado de não levantar tais assuntos de novo.


Deus não era do meu interesse. Não que eu estivesse lutando contra ele; isso lhe daria importância demais! Ele certamente não merecia tanta atenção. Eu também não tinha sido educado num lar secular e ímpio. Na verdade, foi o contrário. Os meus pais tinham deixado os confortos da vida na Suíça para seguir o chamado imperativo de Deus para servi-lo como missionários. 


Não pense que a fé cristã deles era hipócrita ou uma mera fachada. Era uma fé vivida através de dificuldades, sacrifícios e provações; uma fé vigorosa e alegre fundada na Bíblia que nós, como uma família, constantemente líamos e meditávamos e que era para ser obedecida a qualquer custo. Era uma fé cheia dos sabores da vida e com o cheiro selvagem que surge da terra seca quando é subitamente encharcada pela copiosa chuva das primeiras águas do verão.


Eu admirava, eu respeitava, eu amava os meus pais. Não houve rebelião da minha parte contra eles, mas, no final das contas, a religião deles não era de meu interesse para a minha vida adulta. Para eles certamente era útil. Eu não precisava disso. Eu era autossuficiente. A intensidade dos meus sentimentos justificava a minha existência. Eu facilmente conseguiria viver sem o Deus deles. Não que eu fosse inteiramente livre da ansiedade. Mas tal ansiedade era uma parte integral da minha situação existencial, que era autossuficiente.


Em 1960 eu deixei a África do Sul, onde nasci, a fim de estudar História na Sorbonne. Quando eu deixei o país, eu estava na lista da polícia secreta e etiquetado como um comunista por ter expresso ousadamente minha indignação contra as flagrantes injustiças da minha terra natal. Mas eu nunca tinha sido tomado pelo absurdo reducionista do marxismo! Foi então que eu descobri a Paris que cativou a minha sede por luz, brilho e equilíbrio humano. Mas o encanto não durou muito. Rapidamente eu descobri que por trás do verniz dessa sociedade, que era tão justa na sua condenação do meu país, jazia uma concentração de corrupção, injustiça e indiferença com os homens, que, por contraste, fazia a África do Sul parecer um paraíso. Foi nessa época que aquele gnomo do Quartier Latin, Jean-Paul Sartre, ainda governava em Paris (e no mundo liberal) como a maior influência para sua mentalidade e maneiras. Pelo seu ensino e exemplo, ele estava acendendo, na própria pessoa do Pol Pot, por exemplo, os fogos de um novo genocídio socialista.


Junto com a exaltação dos meus sentimentos e do meu ego, também veio uma repugnância inevitável em relação a esse inferno que eram os “outros”, um horror para um mundo que estava para mim insoluvelmente apodrecido; um mundo onde o comportamento externo benevolente era nada mais do que uma fachada sorridente para ocultar todo tipo de corrupção. O bem estava ali, dentro de mim; o mal estava lá fora no mundo. Esta aversão foi fortalecida pela minha pesquisa, concentrada na história da colonização da bacia do Congo antes da Primeira Guerra Mundial. O Congo tinha sido entregue pelos poderes coloniais da França e da Bélgica para a liberdade administrativa total de empresas comerciais desimpedidas de qualquer restrição econômica, moral, jurídica ou política. O resultado da liberdade ilimitada de tal ganância radical foi bem chamada de O Coração das Trevas por Joseph Conrad que, como capitão de navio, viveu esse horror no rio Congo. Isso resultou numa barbaridade indescritível. Causou a morte de mais de cinco milhões de africanos conguenses, assim iniciando uma era de genocídio.


A minha indignação estava começando a dar as caras. De onde veio tal abdicação do poder político responsável? Como foi que esses poderes coloniais não confrontaram o impulso ilimitado e agressivo por lucros e dividendos ilimitados? De onde veio tal dicotomia entre ética e comércio, entre ética e política? Eu tive de retornar ao estudo da história antiga! Naquela época eu estava fazendo essa pesquisa com tal abandono selvagem que a minha tese se tornou academicamente inviável! O meu propósito maior era, agora, descobrir a fonte desse conflito sem misericórdia entre as duas civilizações que eu comecei a perceber como constitutivas de nossa velha Europa: por um lado, a realidade, pelo outro, a aparência; o fingimento total, o politicamente correto de toda era que, agora (em 1962), estava conquistando as nossas mentes pelos novos charmes da televisão, confrontado por outra visão: a da realidade temporal, moral e espiritual. Uma civilização fundamentada nas classes rurais da sociedade, as da antiga nobreza e dos artesãos e dos agricultores, oposta à civilização de um poder político, cultural e financeiro da corte subjazendo à fachada religiosa romanista que perseguia ferozmente o verdadeiro cristianismo. Eu descobri que o tempo tanto da Reforma quanto da Renascença como sendo um dos últimos grandes momentos na história europeia onde esses dois mundos, essas duas formas de civilização, se enfrentaram com uma paridade política quase idêntica.


Eu descobri, enquanto estudava os estilos, os modos de expressão desses dois mundos, que esse choque cultural tinha deixado sua marca na poesia daquela era. Pois essa luta também era entre duas estéticas: uma com sua ênfase colocada numa busca puramente formal pela beleza — em Petrarca, Ronsard, Malherbe e até (talvez) Racine; a outra onde um estilo complexo era usado, antes de tudo como a expressão mais forte da verdade, da forma mais impressionantemente adequada: Rutebeuf, Eustache Deschamps, François Villon, Theodore de Bèze, Agrippa d’Aubigné, La Fontaine e finalmente Molière. Mais recentemente também Louis-Ferdinand Céline. Esta busca pela verdade por meio de um estilo na literatura também me levou, no meu estudo dos escritores de prosa do século dezesseis, a descobrir como eles também contribuíram para a manifestação daquela estética dupla que eu estava tão incansavelmente explorando. Foi assim que eu me deparei com João Calvino: pelo estudo do estilo dele!

Foi aí então, numa tardinha de domingo na primavera do meio dos anos sessenta quando, ao esperar pelo trem junto com uma amiga (eu esperava me casar) na plataforma da estação de trem de Neuchâtel (a cidade onde eu estava ensinando numa Escola Comercial), que a minha vida perdeu o chão. Estávamos esperando pelo trem que iria levá-la para sua casa em Orbe. Tínhamos tido um dia alegre e pacífico. Mas num instante, tudo que eu era, tudo que eu tivera por tanto tempo, por tantos anos tão árduos, trabalhado por, foi por água abaixo. Num instante, eu subitamente perdi, no que me pareceu ser irremediável, a própria sensação de que eu existia. O sentimento da presença do meu corpo tinha me deixado. Eu toquei as minhas mãos, a minha cabeça, as minhas pernas … não tinha nada ali! Profundamente perturbada a minha amiga continuou a me perguntar: “cadê você?” Mas da mesma forma que Adão, depois de ter tomado do fruto do conhecimento do bem e do mal, não podia responder nem a questão que lhe foi posta por Deus, eu também só podia exclamar: “estou acabado, estou totalmente acabado!” Eu tinha tomado conta da minha própria morte, um fim definitivo e absoluto para a minha vida. Não podia sequer cogitar o suicídio, visto que a morte já tinha batido na minha porta. E nisso tudo não havia angústia, pois eu estava tomado por todo tipo de sentimento. Uma coisa foi deixada: uma visão mental friamente clara: “je suis foutu!”, “eu estou totalmente acabado”, era tudo que eu podia exclamar antes do trem levá-la.


Depois, muito depois, eu comecei a entender o que tinha acontecido ali na plataforma da estação de trem Neuchâtel. Deus, em sua misericórdia, tinha aberto as escamas dos meus olhos para eu ver o vazio da minha vida; ele tinha, num piscar de olhos, revelado a vacuidade total do meu orgulho ilimitado! Ele tinha me mostrado, na minha própria carne, que o fruto, que o salário do pecado sempre é a morte. Que, sem ele, eu estava, de fato, morto espiritualmente. Ele fez tal condição da minha morte presente assim fisicamente tangível para mim. Ele revelou essa ausência de sentido que eu via com tanto senso de horror nos outros, como estando, na realidade, exatamente na fonte da minha própria vida.


Mas a vida continua, mesmo para aqueles que descobrem que são mortos-vivos. O trem tinha partido e eu fui até meu aposento de sótão alugado de uma família italiana, logo acima dos jardins do Hôpital Pourtalès onde eu logo começaria a minha nova carreira. Foi ali, naquele pequeno sótão, que João Calvino estava à minha espera. Seu Tratado sobre Escândalos estava aberto na minha mesa onde eu tinha, no dia anterior, interrompido o estudo de seu estilo, sem saber que estava tão perto de cruzar a realidade da minha morte. A urgência impressionante deste texto; sua precisão e ritmo apaixonado e o humor de seu estilo, tudo isso serviu para carregar um argumento vigoroso e poderoso; isso me cativou. O livro estava aberto na minha mesa, mas agora não podia mais ser o estilo o que capturava a minha atenção. Era a mensagem bíblica que ele tão vigorosamente punha diante do leitor.

Contudo, a minha aniquilação existencial não me deixava escapar! Esse vão não tinha nem mesmo o consolo do desespero. Com a consciência fria de que a minha vida tinha acabado eu me sentei e li a página aberta. Essas palavras capturaram a minha atenção imediata. “Quem quer que, em angústia, clame a Deus, Deus nunca lhe abandonará”. Eu estava bem ciente de que Calvino estava aqui citando uma passagem de um Salmo. Mas esse texto da Palavra de Deus não me deixava escapar. Como, eu me perguntava, poderia Calvino escrever tal afirmação? Sim, eu cheguei, com um longo finalmente, a encontrar esse desespero. 


Mas eu me perguntei: “como pode um Deus inexistente preservar alguém da angústia e isso pela fé exatamente na inexistência dele?” Mas então eu pensei comigo mesmo: “Espere! Você não sabe de nada! Talvez o Deus de Calvino realmente exista no final das contas!” Seguindo o exemplo da famosa dúvida de Pascal, que eu, à época, nunca tinha ouvido falar, eu disse a mim mesmo: “se ele não existir, você não tem nada a perder. Mas se ele existir, você tem tudo a ganhar!” Então seguindo outro exemplo famoso, também desconhecido por mim, eu orei a oração desesperada de abandono, repetida em tantas noites de sexta por Charles de Foucauld na Igreja de São Sulpício em Paris, uma súplica dirigida por um pecador bem público a um Deus Santo e Todo-Poderoso, uma divindade totalmente inalcançável a nós por causa de nossos pecados. Com a cautela de alguém que agora tinha nada a perder, eu falei com total franqueza ao Deus em que eu não cria: “vamos ser bem claros! Eu não creio de jeito nenhum em você. Mas eu não sou onisciente! Se você realmente existir, o que eu fortemente duvido, não cabe a mim te encontrar. Cabe a você se mostrar a mim”.

Nosso Deus Misericordioso e Todo-Poderoso responde a tal fé, por mais rudimentar e incrédula que seja. Calvino testemunhou isso ao citar esse Salmo para os acadêmicos incrédulos de seu tempo: Deus salva, mesmo o mais desesperadamente perdido, por sua graça soberana e eficaz. Nada aconteceu, aparentemente. Eu continuei no meu estado de abatimento físico e espiritual por muitos meses. Mas, naquele momento, eu tinha passado do Mundo de pecado para o Reino da graça, daquele Império maligno onde Satanás reina sobre os homens perdidos para o Reino de Deus e do seu Cristo. Por quinze longos meses a convicção do meu pecado perante um Criador Santo e Justo continuou a crescer, até que eu, ao reler a Epístola aos Romanos, finalmente descobri, sendo uma supresa para mim, que a ira impetuosa de Deus, que eu tão justamente merecia, tinha, na cruz do Gólgota e para a minha redenção, caído sobre o amado Filho do Pai, o nosso Salvador e Senhor Jesus-Cristo, Deus feito homem, o único Mediador entre o Pai e os homens caídos, o santo Cordeiro de Deus que tira para nós o pecado do mundo.


Foi dessa forma que o único Deus verdadeiro, Criador dos céus e da terra, o Sustentador infalível de sua criação, o Senhor da história, o Legislador Soberano e Redentor de seu povo — a igreja que ele tinha comprado para si por meio do sacrifício de seu Filho na cruz —se manifestou a mim. Eu fiquei deslumbrado quando eu descobri que este Deus era digno de toda a minha confiança; e que na sua palavra escrita, a Bíblia, era verdadeira, e em cada parte minúscula, totalmente confiável.

É esse Deus que me levou a abandonar ambições acadêmicas excessivas, a trocar de profissões e reconstruir uma vida arruinada pelo pecado. Na minha condição incapacitada, eu não marquei uma consulta com um psiquiatra, mas trabalhei primeiramente por cinco anos como um jardineiro — uma maravilhosa reabilitação física e psíquica — e então por dez anos (um tempo em que Deus nos deu, a Rose-Marie e a mim, cinco filhos) como carregador de bagagens na estação de trem de Lausanne — um extraordinário campo missionário —, e hoje como carteiro. É este Deus que usou tais meios para pacientemente, pouco a pouco, renovar o meu pensamento a fim de conformar tanto a minha mente quanto a minha vida, em Cristo e pelo seu Espírito Santo, aos padrões infalíveis da sua Lei-Palavra. Eu devo à sua graça imutável o fato de que, agora, eu creio nele e, por meio dele, eu ainda estou vivo hoje. É este Deus que nos leva a trabalhar dia a dia na tarefa infindável de levar todos os nossos pensamentos e todas as nossas ações sob a obediência que devemos a seu Filho, nosso Senhor Jesus-Cristo. É ele, eu firmemente creio, que me guardará para a vida eterna.


Eu louvo a ele com todo o meu coração por sua obra tanto como Criador quanto como Redentor, uma obra de esplendor e magnificência sem igual. Somente a ele pertence toda honra e glória, ao único Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Amém!

Por Jean-Marc Berthoud

Fonte: http://monergismo.com

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