CONTRA A INDIFERENÇA DOS ATEUS por Blaise Pascal


 

Saibam, ao menos, que religião combatem, antes de combatê-la. Se essa religião se gabasse de ter uma visão clara de Deus e de possuí-lo com clareza e sem véu, seria combatê-la dizer que não se vê nada, no mundo, que a mostre com tal evidência. Mas, como afirma, ao contrário, que os homens se acham nas trevas e afastados de Deus, que se oculta ao seu conhecimento, sendo mesmo esse Deus absconditus o nome com que se apresenta nas Escrituras, em suma, se trabalha igualmente para estabelecer duas coisas: que Deus estabeleceu na Igreja marcas sensíveis para ser reconhecido pelos que o procurarem sinceramente, e que, no entanto, as cobriu de tal forma que só será percebido pelos que o procurarem de todo o coração, que proveito podem eles tirar, quando, na negligência em que fazem profissão de estar procurando a verdade, exclamam não haver nada que a mostre, de vez que essa obscuridade em que se encontram e que objetam à Igreja não faz senão estabelecer uma das coisas que ela sustenta, sem tocar na outra, estabelecendo assim a sua doutrina, em lugar de arrumá-la?

Para combatê-la, ser-lhes-ia preciso exclamar que fizeram todos os esforços em procurá-la por toda parte, mesmo naquilo que a Igreja propõe com o fim de nela se instruírem, mas sem nenhuma satisfação. Se falassem do destino, combateriam, na verdade, uma das suas pretensões. Espero mostrar aqui, porém, que não há ninguém capaz de falar razoavelmente do destino. Ouso mesmo dizer que jamais alguém o fez. Sabe-se muito bem de que maneira agem os que têm esse intuito. Acreditam ter feito grandes esforços para instruir-se, por terem empregado algumas horas na leitura de um dos livros sagrados e por terem interrogado algum eclesiástico sobre as verdades da fé. Gabam-se, depois, de terem investigado em vão nos livros e entre os homens. Mas, na verdade, não posso deixar de lhes dizer o que freqüentemente tenho dito: que essa negligência é inadmissível. Não se trata, no caso, do irrefletido interesse de um estranho, para assim proceder: trata-se de nós próprios e do nosso todo.

A imortalidade da alma é uma coisa que nos preocupa tanto, que tão profundamente nos toca, que é preciso ter perdido todo sentimento para permanecer indiferente diante dela. Todos os nossos pensamentos e ações devem tomar caminhos tão diferentes, conforme se esperem ou não os bens eternos, que é impossível fazer uma pesquisa sensata e criteriosa sem ter em vista esse ponto que deve ser o nosso último objeto.

Assim, o nosso primeiro interesse, o nosso primeiro dever, é esclarecer bem o assunto, do qual depende toda a nossa conduta. Eis porque, dentre os que não estão persuadidos disso, eu estabeleço uma extrema diferença entre os que trabalham com todas as suas forças para instruir-se a respeito e os que vivem sem se dar a esse trabalho e sem pensar nisso.

Só posso ter compaixão dos que gemem sinceramente nessa dúvida, dos que a observam como a última das desgraças e dos que, sem nada poupar para sair dela, fazem de tal pesquisa as suas principais e mais sérias ocupações.

Mas, quanto aos que passam a vida sem pensar nesse último fim da existência, de forma que, por essa única razão, não descobrem em si próprios as luzes que os persuadam, deixando de procurá-las em outra parte e de examinar a fundo se essa opinião é daquelas que o povo recebe com uma simplicidade crédula ou daquelas que, embora obscuras por natureza, possuem, contudo, um fundamento bastante sólido e inabalável, eu os considero de maneira bem diferente.

Tal negligência numa questão em que se trata da própria pessoa, da própria eternidade, do próprio todo, não me irrita mais do que enternece: assombra-me e espanta-me, sendo para mim uma monstruosidade. Não o afirmo pelo zelo piedoso de uma devoção espiritual. Entendo, ao contrário, que se deve ter esse sentimento por um princípio de interesse humano e por um interesse de amor próprio; é preciso não ver nisso, apenas, o que vêem as pessoas menos esclarecidas.

É preciso ter a alma muito elevada para compreender que não há aí satisfação verdadeira e sólida; que todos os nossos prazeres não passam de vaidade; que os nossos males são infinitos; que, finalmente, a morte que nos ameaça a cada instante deve colocar-nos infalivelmente, dentro de poucos anos, na terrível necessidade de sermos eternos, ou aniquilados, ou infelizes.

Nada mais real nem mais terrível do que isso. Por mais corajosos que desejemos ser, é esse o fim que espera mesmo a mais bela vida do mundo. Que se reflita sobre isso e se diga, depois, se não é indubitável que o único bem da vida presente é a esperança de uma vida futura; que só somos felizes na medida em que dela nos aproximamos; e que, não havendo mais infelicidades para os que têm uma inteira certeza da eternidade, também não há felicidade para os que não possuem luz alguma.

É, por conseguinte, um grande mal permanecer nessa dúvida, sendo ao menos um dever indispensável investigar quando ela existe, porque aquele que duvida e não investiga se torna, então, não só infeliz, mas também injusto. Com efeito, se com isso se mostra tranqüilo e satisfeito, se disso faz profissão e se por isso se sente orgulhoso, fazendo disso o motivo de sua alegria e de sua vaidade, não tenho termos para qualificar tão extravagante criatura.

Onde se foram buscar tais sentimentos? Que motivo de alegria existe quando só se esperam misérias sem remédio? Que motivo de orgulho pode haver nas obscuridades impenetráveis e como admitir que tal raciocínio seja o de um homem razoável?

"Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou. Estou numa ignorância terrível de todas as coisas. Não sei o que é o meu corpo, nem o que são os meus sentidos, nem o que é a minha alma, e até esta parte do meu ser que pensa o que eu digo, refletindo sobre tudo e sobre si própria, não se conhece melhor do que o resto. Vejo-me encerrado nestes medonhos espaços do universo e me sinto ligado a um canto da vasta extensão, sem saber por que fui colocado aqui e não em outra parte, nem porque o pouco tempo que me é dado para viver me foi conferido neste período de preferência a outro de toda a eternidade que me precedeu e de toda a que me segue".

"Só vejo o infinito em toda parte, encerrando-me como um átomo e como uma sombra que dura apenas um instante que não volta".

"Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar".

"Assim como não sei de onde venho, também não sei para onde vou Sei, apenas, que, ao sair deste mundo, cairei para sempre no nada ou nas mãos de um Deus irritado, sem saber em qual dessas duas situações deverei ficar eternamente. Eis a minha condição, cheia de miséria, de fraqueza, de obscuridade. Concluo, de tudo isso, que devo passar todos os dias da minha vida sem pensar em descobrir o que me deve acontecer. Talvez pudesse encontrar algum esclarecimento nas minhas dúvidas, mas não quero dar-me a esse trabalho, nem dar um passo nesse sentido. Tratando com desprezo os que com isso se preocupam, quero experimentar esse grande acontecimento sem previdência e sem temor, deixando-me passivamente conduzir à morte, na incerteza da eternidade da minha condição futura".

Quem desejaria ter como amigo um homem que assim falasse? Quem o escolheria para lhe comunicar as suas intimidades? Quem recorreria a ele em suas aflições?

Finalmente, a que utilidade, na vida, se poderia destiná-lo?

Na verdade, é glorioso, para a religião, ter como inimigos homens tão insensatos, pois a sua oposição lhe é tão pouco perigosa que serve, ao contrário, para o estabelecimento de suas principais verdades. Com efeito; a fé cristã não visa, principalmente, senão a estabelecer estas duas coisas: a corrupção da natureza e a redenção de Jesus Cristo. Ora, se eles não servem para mostrar a verdade da redenção pela santidade dos seus costumes, servem ao menos, admiravelmente, para mostrar a corrupção da natureza com sentimentos tão desnaturados.

Nada é tão importante para o homem como a sua condição, e nada lhe é tão temível como a eternidade. Por conseguinte, se acham-se homens indiferentes à perda do próprio ser e ao perigo, de uma eternidade de miséria, isso não é natural. Procedem de modo inteiramente diverso em relação a todas as outras coisas: temem até as mais insignificantes, e as prevêem, e as sentem. O mesmo homem que passa tantos dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido um cargo, ou por alguma ofensa imaginária à sua honra, sabe também que vai perder tudo com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova. É uma coisa monstruosa ver, num mesmo coração e ao mesmo tempo, essa sensibilidade pelas menores coisas e essa estranha insensibilidade pelas maiores.

É um encantamento incompreensível e um adormecimento sobrenatural, marcando uma força todo-poderosa que os causa.

É preciso haver um estranho abalo na natureza do homem para que possa vangloriar-se de se achar nesse estado em que parece incrível que uma só pessoa possa estar. No entanto, a experiência me faz ver tão grande número delas que seria de nos surpreendermos, se não soubéssemos que quase todas fingem ser assim e que na realidade não o são. São pessoas que ouviram dizer que as belas maneiras do mundo consistem em fazer-se de louco É o que chamam ter sacudido o jugo e o que experimentam imitar. Mas, não seria difícil explicar-lhes quanto se arriscam quando dessa forma procuram a estima.

Não é esse o meio de granjeá-la, mesmo quando se trata de pessoas que julgam sensatamente as coisas e que sabem que o único caminho para triunfar é aparentar honestidade, fidelidade, critério e capacidade de bem servir o amigo, de vez que os homens só gostam, naturalmente, do que lhes possa ser útil. Com efeito, que vantagem temos em ouvir um homem dizer que sacudiu o jugo, que não crê na existência de um Deus que vele sobre suas ações, que se considera como único senhor de sua conduta e que não pensa em prestar contas senão a si próprio? Pensarão, por isso, que nos levarão a depositar-lhes mais confiança e a esperar seus consolos, conselhos e socorros em todas as necessidades da vida? Pretenderão alegrar-nos dizendo-nos que estão convencidos de que a nossa alma não passa de um pouco de vento e de fumaça, e isso num tom orgulhoso e satisfeito? Será coisa que se diga com alegria? Não será, ao contrário, uma coisa que deva ser dita com tristeza, como sendo a mais triste do mundo?

Se pensassem nisso seriamente, veriam que isso é tão mal apanhado, tão contrário ao bom senso, tão oposto à honestidade e tão afastado em tudo dessa boa aparência que mostram, que seriam antes capazes de regenerar do que de corromper os que tivessem alguma inclinação para segui-los. E, com efeito, fazei-os prestar contas dos seus sentimentos e das razões que possuem para duvidar da religião: dirão coisas tão frívolas e tão baixas que vos persuadirão do contrário. Foi o que muito a propósito lhes disse um dia alguém: "Se continuardes a discorrer dessa maneira, na verdade me convertereis". E tinha razão: de fato, quem não teria horror de se ver com sentimentos em que se têm como companheiros pessoas tão desprezíveis?

Eis porque os que não fazem senão fingir esses sentimentos seriam bem desgraçados em contrariar seu natural para tornar-se os mais impertinentes dos homens. Se desgostam-se, no fundo do coração, por não terem mais luz, não o dissimulem, pois tal declaração não será vergonhosa. Só há vergonha em não possuí-la. Nada acusa tanto uma extrema fraqueza de espírito como não conhecer qual é a desgraça de um homem sem Deus; nada marca tanto uma disposição má de sentimentos como não desejar a verdade das promessas eternas; nada é mais covarde do que mostrar valentia contra Deus. Deixem, pois, essas impiedades para os que são de índole bastante má para serem verdadeiramente capazes disso; sejam ao menos homens de bem, se não puderem ser cristãos; e reconheçam, finalmente, que só há duas espécies de pessoas que podem ser chamadas de razoáveis: ou os que servem Deus de todo o coração porque o conhecem, ou os que o procuram de todo o coração porque não o conhecem.

Mas, quanto aos que vivem sem conhecê-lo e sem procurá-lo, estes se julgam tão pouco dignos do seu próprio cuidado que não são dignos do cuidado dos outros, sendo preciso ter toda a caridade da religião que eles desprezam para não os desprezar até abandoná-los em sua loucura. Mas, como essa religião nos obriga a observá-los sempre, enquanto estiverem nesta vida, como capazes da graça que pode esclarecê-los, e a acreditar que podem em pouco tempo tornar-se mais cheios de fé do que nós o somos, podendo nós, ao contrário, cair na cegueira em que eles se acham, é preciso fazer por eles o que desejaríamos que se fizesse por nós se estivéssemos em seu lugar, e chamá-los a ter piedade de si próprios e a dar ao menos alguns passos para tentar descobrir luzes.

Dediquem a esta leitura algumas das horas que tão inutilmente empregam fora: se alguma aversão experimentarem, talvez reconheçam ainda assim alguma coisa ou, pelo menos, não perderão muito. Quanto aos que nisso usarem de toda a sinceridade e mostrarem um verdadeiro desejo de descobrir a verdade, espero que se satisfarão e ficarão convencidos das provas de uma religião tão divina por mim coligidas aqui.


por: Blaise Pascal


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