O que é justiça social? Devem os cristãos ser defensores da justiça social? Devem os cristãos até mesmo utilizar este termo?
Nos últimos anos, a ascensão do termo “justiça social” entre os cristãos coincidiu com um nível crescente de incompreensão, mau uso e má aplicação do termo. Aqui estão algumas coisas que os cristãos devem saber sobre a justiça social.
O padre jesuíta Luigi Taparelli D’Azeglio cunhou o termo na década de 1840 e baseou o conceito nos ensinamentos de Tomás de Aquino. Taparelli usou o termo para se referir à concepção comum e tradicional de justiça aplicada aos arranjos constitucionais da sociedade. Na época, o conceito de Taparelli foi considerado uma contribuição significativa para a filosofia política conservadora.
De acordo com o historiador religioso Thomas Patrick Burke, há boas razões para considerar Taparelli como o “pai do ensino social católico”. Como observa Burke, um dos alunos de Taparelli escreveu o primeiro rascunho da encíclica Rerum Novarum (Sobre a Condição das Classes Trabalhadoras), de 1891, do Papa Leão XIII, a primeira declaração papal sobre “a questão social”. O papa Leão e o papa Pio XI também estudaram a obra de Taparelli. Outro seguidor escreveu a encíclica de 1931 de Pio XI, Quadragesimo Anno, que adotou oficialmente a “justiça social” como parte da doutrina católica.
Segundo o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, “grande parte do ensino social da Igreja é solicitado e determinado por importantes questões sociais, para as quais a justiça social é a resposta apropriada”. Inclusive, o Catecismo da Igreja Católica dedica uma seção à justiça social, que é definida como:
“A sociedade garante a justiça social quando fornece as condições que permitem às associações ou indivíduos obter o que lhes é devido, de acordo com sua natureza e vocação. A justiça social está ligada ao bem comum e ao exercício da autoridade”.
Foi após a década de 1970 e a publicação de “Uma Teoria da Justiça”, de John Rawls, que o termo se tornou amplamente associado à filosofia política secular liberal, particularmente com a mudança das instituições sociais. Como Rawls escreveu: “Nossa preocupação é unicamente com a estrutura básica da sociedade e suas principais instituições e, portanto, com os casos padrão de justiça social”.
Por causa da natureza fluida da língua, as palavras assumem significado não apenas através de seu significado primário ou literal (denotação), mas também através de sua associação emocional (conotação). A conotação de “justiça social” muitas vezes superou a denotação, tornando difícil entender como o termo está sendo usado. Tal como disse o jornalista político Jonah Goldberg, “a justiça social tornou-se um código para ‘coisas boas’ que ninguém necessita defender e que ninguém ousa ser contra”.
Parte do problema é que a palavra raiz — “justiça” — também é mal entendida ou usada por diferentes grupos de maneiras diferentes. O Oxford English Dictionary define “justiça social” como “justiça em termos de distribuição de riqueza, oportunidades e privilégios dentro de uma sociedade”, mas define vagamente a justiça como a “qualidade de ser justo e razoável”.
Uma definição mais útil vem das Institutas de Justiniano, parte da codificação da lei romana no século VI ordenada pelo imperador bizantino Justiniano I. Nas Institutas, a justiça é definida como “o propósito fixo e constante que dá a cada homem o que lhe é devido”. O filósofo Michael Sandel também define a justiça como “dar às pessoas o que elas merecem, onde o que elas merecem depende de suas virtudes e depende de resolver questões difíceis sobre a boa vida”.
De uma perspectiva cristã, a justiça pode ser definida, como diz o filósofo Gideon Strauss, como “quando todas as criaturas de Deus recebem o que lhes é devido e contribuem a partir de sua singularidade para nossa existência comum”. Com base nisso Strauss identifica duas amplas correntes de justiça: justiça pública e justiça social. “A justiça pública é o aspecto político — o trabalho dos cidadãos e dos funcionários de cargos políticos que moldam uma vida pública para o bem comum”, diz Strauss. “A justiça social é a contrapartida da sociedade civil — organizações não políticas que promovem a justiça”.
A concepção bíblica da justiça é principalmente capturada em duas palavras hebraicas: mishpat e tzadeqah. Como explicou Tim Keller,
“A palavra hebraica para “justiça”, mishpat, ocorre em suas várias formas mais de 200 vezes no Antigo Testamento hebraico. Seu significado mais básico é tratar as pessoas equitativamente. Significa absolver ou punir cada pessoa pelos méritos do caso, independentemente de raça ou status social. Qualquer um que cometa o mesmo erro deve receber a mesma penalidade.
Mas mishpat significa mais do que apenas a punição do erro. Significa também dar às pessoas seus direitos. Deuteronômio 18 determina que os sacerdotes do tabernáculo sejam mantidos por meio de uma certa porcentagem da renda das pessoas. Este sustento é descrito como “o mishpat dos sacerdotes”, que significa a obrigação para com eles ou o direito deles. Portanto, mishpat se refere a dar às pessoas o que elas merecem, seja punição, proteção ou cuidado”.
Mas para entender a ideia bíblica de justiça, Keller diz que devemos considerar também tzadeqah:
“Obtemos uma melhor percepção quando consideramos uma segunda palavra hebraica que pode ser traduzida como ‘ser justo’, embora geralmente seja traduzida como ‘ser reto’. A palavra é tzadeqah e refere-se a uma vida de relacionamentos corretos.
Quando a maioria das pessoas modernas vê a palavra ‘retidão’ na Bíblia, eles tendem a pensar nela em termos de moralidade privada, tal como a castidade sexual ou a diligência na oração e no estudo da Bíblia. Mas na Bíblia, tzadeqah refere-se à vida cotidiana em que uma pessoa conduz todos os relacionamentos na família e na sociedade com justiça, generosidade e equidade. Não surpreende, portanto, descobrir que tzadeqah e mishpat são achadas juntas dezenas de vezes na Bíblia.
Essas duas palavras correspondem aproximadamente ao que alguns chamaram de justiça ‘primária’ e ‘retificadora’. Justiça retificadora é mishpat. Significa punir os malfeitores e cuidar das vítimas de um tratamento injusto. A justiça primária, ou tzadeqah, é um comportamento que, se prevalecesse no mundo, tornaria a justiça retificadora desnecessária, porque todos estariam vivendo em um relacionamento correto com todos os outros. Portanto, embora tzadeqah seja primariamente sobre estar em um relacionamento correto com Deus, a vida justa que resulta é profundamente social”.
Nota: O grupo de palavras tzadeqah às vezes se refere a declarar uma pessoa como justa, ou seja, a uma decisão judicial. (Veja alguns dos escritos de Mark Seifrid ou Stephen Westerholm). Essa noção está por trás da dikaiosyne grega, que, em vários aspectos, pode significar, dependendo do contexto, justiça (retidão) ou justificação.
Como diz Keller, quando as duas palavras hebraicas tzadeqah e mishpat estão unidas — como ocorre mais de três dúzias de vezes — a expressão moderna que melhor transmite o significado é “justiça social”. A justiça social, portanto, não apenas seria um conceito bíblico, mas seria também um subconjunto da justiça bíblica.
Afirmar que necessitamos apenas de “justiça bíblica” e não de “justiça social” é um erro de categorização (isto é, um erro semântico ou ontológico no qual as coisas pertencentes a uma categoria particular são apresentadas como se pertencessem a uma categoria diferente). A justiça bíblica inclui todas as formas de justiça ordenadas por Deus, incluindo a justiça retificadora que pertence ao governo (o que chamamos de justiça pública ou legal), bem como a justiça entre indivíduos (o que poderia ser chamado de justiça interindividual) e justiça envolvendo organizações e grupos (o que chamamos de justiça social).
No início do século 20, vários grupos cristãos liberais começaram a identificar o Evangelho totalmente com a justiça social. Isto, que foi chamado de “evangelho social” tornou-se particularmente influente dentro das principais denominações protestantes tradicionais e nos círculos católicos progressistas. Com o passar do tempo, à medida em que as causas sociais progressistas se tornaram mais fundamentais para o movimento do evangelho social, o bem da justiça superou o bem maior do evangelismo.
Uma verdadeira compreensão do Evangelho, no entanto, permite que os cristãos trabalhem pela justiça no mundo de maneira que não mine a centralidade do Evangelho. Como explicou Don Carson,
“O Evangelho são as boas novas daquilo que Deus fez, particularmente em Cristo Jesus, particularmente em sua morte na cruz e ressurreição; não é aquilo que nós fazemos. Por ser novas, deve ser proclamado. Mas por ser poderoso, não apenas nos reconcilia com Deus, mas nos transforma, e isto necessariamente molda nosso comportamento, prioridades, valores, relacionamentos com as pessoas e muito mais. Estes não são extras opcionais para aqueles mais extremamente santificados, mas consequências do Evangelho. Pregar o dever moral sem o poder subjacente do Evangelho é um moralismo que é ao mesmo tempo patético e impotente; pregar um evangelho aguado como o que nos leva ao reino, a ser seguido pelo discipulado e por obras de misericórdia, é uma sombra anêmica do robusto Evangelho da Bíblia; pregar o Evangelho e a justiça social como exigências equivalentes é compreender erroneamente a totalidade das Escrituras.
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Cristãos interessados apenas em aliviar o sofrimento eterno, implicitamente negam o lugar do amor no aqui e agora; cristãos que deixam de proclamar o Cristo do evangelho do reino ao tratarem vítimas de AIDS em seu sofrimento aqui e agora, demonstram não crer realmente em tudo o que a Bíblia diz sobre fugir da ira vindoura. No final das contas, é um ateísmo prático e ser omisso no amor”.
Quer usemos o termo ou não, os cristãos estão engajados na justiça social quando articulamos questões a respeito do aborto, da reconciliação racial, da liberdade religiosa, e do tráfico sexual. Nós nos envolvemos na justiça social cada vez que buscamos a reforma moral de nossa sociedade de uma maneira que garanta que todas as pessoas sejam tratadas com dignidade e recebam aquilo que lhes é devido. Como disse Mark Tooley:
“Cristãos e igrejas definitivamente devem defender a justiça social no sentido de que uma sociedade cada vez mais pecaminosa necessita de constante reforma moral. O principal instrumento da igreja nesta defesa é o próprio Evangelho. A humanidade redimida é mais propensa a se importar com a justiça do que a humanidade não regenerada. Mas até os redimidos necessitam de uma estrutura ética para a renovação social. E mesmo os não resgatados podem ser recrutados para boas causas com apelos à consciência, à lei natural e ao interesse próprio.
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Um testemunho político cristão válido pela justiça social, começa com a premissa de que todas as pessoas são criadas à imagem de Deus. Também reconhece que o estado não é a igreja, mas tem uma vocação muito diferente, tendo sido divinamente ordenado principalmente para manter a ordem e restringir os ímpios. A busca por justiça social não deve considerar que qualquer melhoria social requer alguma legislação, regulamentação ou outras ações estatais coercitivas.
Em vez disso, a justiça social cristã entende que a maioria da sociedade não é o estado e inclui uma ampla variedade de agentes importantes, incluindo a família, a igreja, outras religiões, empresas, filantropia e instituições de caridade, associações comerciais, grupos cívicos e outros agrupamentos humanos. os quais em princípio, contribuem para a ordem e felicidade humanas.
A justiça social procura especialmente proteger os vulneráveis, incluindo os muito jovens, os muito idosos, os nascituros, os doentes terminais, os deficientes, os pobres e os impopulares. A justiça social também busca energizar os capazes e os poderosos em direção à virtude, à parcimônia e à produtividade. Não deve procurar derrubar, mas erigir. A justiça social deve também salvaguardar as liberdades essenciais baseadas na dignidade humana e no caráter de Deus, tal como a liberdade de expressão, a liberdade de religião e a proteção da propriedade”.
Nos últimos cinco anos, o termo “guerreiro de justiça social” (comumente abreviado SJW*) tornou-se um termo pejorativo para um indivíduo que promove questões de justiça social de uma perspectiva socialmente progressista, especialmente uma enraizada na política de identidade.
Mais recentemente, o termo tem sido usado em sentido mais amplo para se referir a qualquer um — liberal, libertário ou conservador — que defenda a justiça social, especialmente em questões de reconciliação racial.
No início do século XX, um movimento conservador surgiu dentro do protestantismo em reação à teologia liberal e à forma de interpretação bíblica conhecida como alta crítica. Uma série de artigos foi escrita e reunida em uma obra de quatro volumes chamada “Os Fundamentos”, cujo objetivo era descrever as principais doutrinas — os fundamentos — da fé cristã. Estas obras deram origem ao termo “fundamentalista”.
Charles Colson escreveu que “O fundamentalismo” é realmente semelhante ao conceito de “Cristianismo Puro e Simples”, na obra de C. S. Lewis… significa adesão aos fatos fundamentais — neste caso, os fatos fundamentais do cristianismo. Qualquer um que creia nas verdades ortodoxas sobre Jesus Cristo — em resumo, todo cristão — é fundamentalista. E não devemos ter receio do termo nem permitir que o mundo secular distorça seu significado.”
Mas pelo fato de secularistas como H. L. Mencken começarem a usar o termo de maneira depreciativa, os evangélicos começaram a evitar o rótulo. Esta lição ensinou aos secularistas que era possível fazer com que os evangélicos deixassem de se associar a praticamente qualquer termo — até mesmo a palavra “evangélico” — se pudessem dar-lhe uma conotação negativa.
A justiça social, como conceito bíblico, não é um termo que devemos abandonar sem lutar. Parafraseando Colson, não devemos ter receio do termo nem permitir que o mundo secular distorça seu significado bíblico.
Nota do tradutor: A abreviação SJW (Social Justice Warriors) é comumente usada desta forma também em português.
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